Wolfgang Schussel: “A Europa é o que resta do Ocidente”
O antigo chanceler austríaco diz que é preciso ter paciência com Orbán. A China é o verdadeiro desafio. O maior problema de Trump é ter abdicado da liderança mundial. A Europa é o que resta do Ocidente mas não consegue preencher totalmente o vazio.
O antigo chanceler austríaco (entre 2000 e 2007), de centro-direita, tem hoje uma intensa actividade de conferencista e participa em várias instituições dedicadas à reflexão sobre o mundo, incluindo a China. Foi durante o seu tempo que, pela primeira vez, a União Europeia aplicou sanções a um Estado-membro por incluir no governo um partido de extrema-direita. Que regressou outra vez. Wolfgang Schussel esteve em Lisboa a convite da Sociedade Francisco Manuel dos Santos para participar num encontro do grupo.
Veio a Lisboa falar sobre a Europa. Quando foi pela primeira vez chanceler, em 2000, a Europa só tinha 15 países. Teve uma série de problemas quando fez uma coligação com um partido de extrema-direita. Hoje há partidos nacionalistas e populistas em quase todos os países europeus, sendo que alguns estão em coligações governamentais ou apoiam os governos nos parlamentos. Como é que explica este ressurgimento? É só por causa da imigração?
O populismo é um velho fenómeno político na América e na Europa. Já Cícero aconselhava o seu irmão sobre o que é uma boa campanha eleitoral: promete tudo e não faças nada. É esta a característica do populismo, que é de esquerda e de direita, convém não esquecer. O Syriza, o Podemos são partidos populistas de esquerda. E mesmo em partidos centristas temos tendências populistas e nacionalistas.
Mas como explica este surto actual?
Há três elementos. O primeiro é a insatisfação com a actual situação política. Um exemplo. Na Alemanha, seja qual for o partido em que os alemães votem, o resultado é sempre o mesmo: uma “grande coligação”. E isso implica o reforço dos extremos – o Die Linke e, agora, a AfD [Alternativa para a Alemanha, extrema-direita].
Na Áustria era a mesma coisa.
Sim. Nós costumamos dizer que somos peritos em transformar uma “grande coligação” numa “pequena coligação”. Se o resultado das eleições conduz sempre ao mesmo governo, se é impossível derrotar quem governa, se não há alternativa – a célebre TINA –, as pessoas começam a ficar insatisfeitas e, ou abstêm-se, ou votam nas franjas ou nos extremos. O segundo ponto tem a ver com a crise financeira, que desempenhou um papel importante. Não se esqueça que Ben Bernanke [anterior Presidente da FED] lhe chamou a primeira crise financeira global, incluindo a Grande Depressão nos anos 1930. Houve uma queda de 90% nos mercados financeiros globais; em dos ou três meses, uma queda de 20% no comércio mundial. Durante a Grande Depressão foram precisos dois anos para chegar ao mesmo resultado. A crise financeira foi uma enorme ameaça à confiança nas economias e nas democracias ocidentais. E, evidentemente, a crise migratória também mudou muitas coisas. Há alguns números impressionantes. Creio que, na América, o número de hispânicos cresceu de 5% para 18% em 30 anos. Na Suécia, nos últimos 30 anos, os imigrantes passaram de quase zero para 19%. Na Alemanha são 20%. Na Suíça, 25%. Na Áustria, 55% das crianças de Viena que começam a escola primária não falam alemão correntemente.
Cinquenta e cinco por cento?
Cinquenta e cinco por cento não falam alemão em casa. Isto é um enorme desafio. Na Europa de Leste há ainda mais um elemento a tomar em consideração: a perda de população. Letónia e Lituânia perderam pelo menos 30% da sua população desde a entrada na União Europeia. Na Polónia, cerca de um milhão de pessoas deixou o país e vive hoje sobretudo no Reino Unido. Acabo de vir da Bulgária, que perdeu mais de 20% da população.
Emigração para o Ocidente?
Sim, para a Europa Ocidental. A Roménia perdeu três milhões de pessoas. A Hungria, um milhão. Tudo isto significa alguma coisa e tem contribuído para uma viragem em direcção à procura da sua própria identidade. Eles têm medo de se verem alienados perante a vaga de imigrantes, na sua maioria de origem islâmica, mesmo que essa vaga se tenha dirigido sobretudo para a Suécia, Alemanha e Áustria e não para a Bulgária, Polónia ou Roménia. Mas eles têm medo. Devíamos ter um pouco mais de paciência com eles.
Mesmo com Viktor Orbán?
Sem dúvida. O verdadeiro problema da Hungria, que de resto vai bastante bem, é que tem três partidos sociais-democratas que se digladiam mais entre si do que contra Orbán. Devo dizer-lhe que não estou nada preocupado com a Hungria, porque a sociedade civil está viva e capaz de criticar. O mesmo se passa na Polónia. Nenhum jornalista está na prisão, como sabe. Não estamos a falar da Turquia ou da Rússia. É uma realidade completamente diferente. Claro que temos de criticar alguns aspectos que infringem as nossas leis. Mas temos de fazê-lo através do diálogo com eles e não acerca deles.
Portanto, não concorda com a decisão do Parlamento Europeu de abrir um processo de infracção contra a Hungria…
Não, não concordo. Claro que é preferível ter um processo que abra as portas para um diálogo. Creio que a Comissão tem feito o que deve: confrontar o governo húngaro e o polaco com as críticas à violação de certos princípios. Têm de ser criticados. Mas temos de evitar a tentação de lhes dar lições. Devemos ter mais paciência, porque eles tiveram cinquenta anos de opressão comunista e precisam de tempo para aprender como é que se vive em conjunto.
Em 2000, durante uma presidência portuguesa da União Europeia, foram aplicadas sanções diplomáticas ao seu país, ainda que meramente informais, quando o senhor formou um governo com a extrema-direita de Joerg Haider. Qual foi a sensação?
Magoou. Magoou. Em primeiro lugar, magoou-me a mim, pessoalmente, que fui sempre um pró-europeu. As pessoas conheciam-me e podiam confiar em mim. E a verdade é que, seis ou sete meses depois, as sanções acabaram. Não se podem fazer estas coisas por antecipação. É preciso esperar que alguma coisa de negativo aconteça. Nós nunca violámos os valores europeus…
Mas as sanções foram apenas diplomáticas e nem sequer estavam nos tratados.
Também visavam os cidadãos, houve cancelamentos de programas europeus, os austríacos não puderam candidatar-se a postos internacionais. Não eram assim tão informais, tinham substância. Foi depois disso que desenvolvemos com os italianos os procedimentos que estão no Artigo 7.º do Tratado, no qual se prevê que é preciso ouvir e conversar [antes de aplicar sanções].
Dois anos depois, em novas eleições, o seu partido obteve uma vitória (tinha sido o terceiro nas eleições anteriores) e o partido de Haider, que tinha sido o segundo, caiu para 10%. Isso quer dizer que a responsabilidade de governo pode moderar esses partidos? Hoje, pode acontecer a mesma coisa?
O Partido da Liberdade não é a AfD. É um dos mais velhos partidos da Áustria e vai mudando conforme a conjuntura. Têm três alas: uma nacionalista, uma liberal e outra populista. Cada uma luta contra as outras pelo controlo do partido, o que explica, de algum modo, a implosão de 2002, quando passou de 27% para 10% e nós passámos de 27 para 42%. Foi uma enorme vitória. Isso significa que, se os incluímos, eles perdem imediatamente o seu sector populista, o voto de protesto. Não perdem os votos nacionalistas moderados nem os votos liberais. O mesmo acontece, de resto, na Dinamarca, na Suécia ou na Finlândia.
Como lidar com estes partido?
Se estão dispostos a aceitar um programa moderado, podemos lidar com eles, caso contrário, não é possível. Foi o que fizemos: desde o primeiro momento dissemos que a Europa estava fora de qualquer negociação. No meu tempo, durante os primeiros dois anos, votámos por unanimidade o tratado constitucional europeu e votámos unanimemente o alargamento a Leste – houve um voto contra –, e isso acabou por ser positivo. Mas, para eles, custou-lhes votos, naturalmente.
A Europa foi construída contra os nacionalismos, que tinham levado às guerras totais da primeira metade do século. Em que medida o poder crescente destes partidos pode erodir a integração europeia?
Permita-me que a corrija. Creio que a Europa não foi construída contra o nacionalismo, foi construída contra o fascismo e, depois, contra o comunismo – contra ideologias totalitárias. A ideia de integração não aboliu o Estado-nação, pelo contrário, reforçou-o. As nações europeias são demasiado pequenas para resolver os grandes problemas: alterações climáticas, moeda, política externa, defesa, protecção das fronteiras externas, etc... Mesmo assim, apesar de todas essas questões terem de ser tratada ao nível europeu, mantemos uma enorme margem para gerirmos os nossos países – saúde, educação, segurança social. Temos de nos habituar a respeitar o princípio da subsidiariedade. Disse hoje que a Europa não pode salvar-se pela rigidez e pela centralização, mas pela flexibilidade e pela subsidiariedade. O que precisamos de fazer, até para combater o populismo de direita e de esquerda, é tentar encontrar o equilíbrio entre as áreas que temos de fortalecer a nível europeu e o que podemos fazer a nível nacional ou até regional.
Quando olha para o futuro da Europa, quais são os maiores desafios a vencer para que as coisas corram bem?
Olhe, a próxima grande questão é o "Brexit". Não posso lamentar mais a saída do Reino Unido e creio que Portugal pensa o mesmo. Os britânicos sempre acrescentaram alguma coisa que nós, na Europa Central ou na Itália ou na Grécia, não temos nos nossos genes: a visão geopolítica, a abertura, os mercados livres, a globalização. Também a ideia de que cada país deve manter o controlo em algumas áreas, a ideia de subsidiariedade de que já falei. O Reino Unido é o país mais eficaz em matéria de defesa mas também na qualidade da sua diplomacia. Este espírito e estas capacidades vão fazer-nos falta. Mas tem de haver um acordo. Não haver acordo será uma situação terrível para ambos os lados.
Depois do Brexit, o que falta fazer?
A coisa mais importante para o próximo ano é encontrar as pessoas melhores, mais brilhantes, mais competentes, mais enérgicas para os postos relevantes da União Europeia – presidente da Comissão, chefe da diplomacia, presidente do Conselho Europeu, presidente do BCE. Os melhores e os mais brilhantes.
O terceiro desafio é, claro, ao nível da geopolítica: a ascensão da China, a alienação da Rússia, a ausência da liderança americana. A Europa é o resto do Ocidente e, por isso, temos de assumir a nossa responsabilidade global no domínio da política externa, da política de defesa, apoiando o sistema multilateral e as suas instituições. Se não o fizermos, ninguém o fará.
E acredita que a Europa é suficientemente forte, mesmo sem o Reino Unido, para substituir os EUA na defesa da ordem liberal?
Em certa medida, será com o Reino Unido, por isso é tão importante conseguir um bom acordo com eles, o que exige alguma flexibilidade e compromisso de ambas as partes. Mas, com todos os nossos problemas, não subvalorize o facto de sermos sociedades prósperas e pacíficas, termos instituições resistentes e boas democracias. Quem a não ser nós?
Mas precisamos de uma liderança forte. A chanceler Angela Merkel não está num dos seus melhores momentos e não se sabe se ainda vai recuperar…
Não a risque já da paisagem. Não me parece que vá desaparecer, mesmo que seja tempo de começar a discutir a sua sucessão. Macron está lá e esperamos que sobreviva a este mau momento. Precisamos dele, com a sua energia e a sua determinação. E não se trata apenas da França e da Alemanha - é preciso que os países de média dimensão, como a Áustria, Portugal, Holanda, Bélgica, Republica Checa, Grécia, Hungria, façam a sua parte.
Pela primeira vez desde a II Guerra, há um Presidente americano que não gosta da integração europeia nem da relação transatlântica. É só um fenómeno temporário? É uma tendência mais profunda?
É uma boa questão mas, às vezes, as boas questões nem sempre encontram uma boa resposta. Penso que as coisas começaram muito antes de Trump, com a legislação extraterritorial, por exemplo… E nem tudo aquilo que Trump começou é necessariamente negativo. Ele tem razão quando critica a China e é interessante observar como a China está hoje mais disposta a fazer cedências do que estava antes.
Por causa do gigantesco mercado americano.
Claro. A questão da Coreia do Norte ainda não está resolvida, mas creio que as perspectivas são melhores agora. Creio também que as críticas aos aliados europeus sobre as suas despesas com a defesa são correctas. Creio que nem tudo é assim tão negativo.
Mas sua visão e os seus métodos…
São completamente diferentes dos nossos. Ele é um deal-maker e deals versus rules é exactamente o que nos divide. Ele quer deals, nós defendemos regras, queremos uma ordem internacional assente em regras comuns. Mas, mais uma vez, a retórica é uma coisa e a realidade é outras. Jean-Claude Juncker negociou com ele e o resultado foi positivo. Vi agora as notícias sobre o acordo com o Canadá, que já tinha conseguido com o México, para o NAFTA com outro nome…
E com um resultado muito mais favorável aos EUA, que têm poder para impor o que querem.
Sim. Mas não foi uma “guerra comercial”. Foi melhor para os interesses americanos, com certeza, mas não deixa de ser um acordo. Eu não diria que é tudo 100% negativo, como muita gente diz. Mas isso não quer dizer que não devamos estar verdadeiramente preocupados. Sobretudo porque a América se ausentou do seu papel de líder do Ocidente. E isso é um problema. Precisamos de aliados e a América era o nosso principal aliado. Se abandonar o seu papel fundamental, abrir-se-á um vazio, o que nunca é bom. E a Europa não pode preenchê-lo sozinha, isso nós sabemos.
Pensa que os europeus estão dispostos a ter menos Estado social e mais carros de combate?
Não creio que seja sobre carros de combate. Do que precisamos é de mais cooperação digital, mais logística, muito mais cooperação nos serviços de informações. Não é tanto sobre tanques e dinheiro, é sobre cooperação, o que até há pouco tempo era um tabu. Não estou assim tão pessimista. O que sabemos é a jornada fascinante de um continente que viveu 300 anos de conflito, com mais de 120 guerras, e que vive há 70 anos em paz. Multiplicámos a nossa riqueza por 50.
Para manter-se assim, a União Europeia precisa de se apresentar no mundo com uma estratégia comum. Ainda não estamos lá e a China e a Rússia continuam a apostar na divisão da Europa.
Concordo. Mas, ao mesmo tempo, devíamos evitar empurrar a Rússia para os braços da China, enquanto parceiro menor. A Rússia só tem duas opções: ou se vira para o Ocidente, para a Europa, ou se vira para Leste, para a China. Mas, para a China, a Rússia representa apenas 10% da sua população, cerca de 5% da sua economia. Sem negligenciar os problemas que temos com a Rússia, devíamos pensar como é que podemos vencer esta ameaça.
Embora seja difícil, depois da Ucrânia.
Claro que é difícil. Mas se conseguimos ultrapassar as ameaças da Guerra Fria e integrar antigos países comunistas, se a América está a negociar com a Coreia do Norte, por que razão não havemos de conseguir encontrar formas de compromisso com a Rússia, criando uma espiral positiva a partir desta crise ucraniana?
E como olha para a China, a principal candidata a nova superpotência?
Já é uma superpotência, pelo menos na Ásia. Está a investir imenso nas capacidades militares, na digitalização – representa hoje 20% do investimento global no sector, cerca de 230 mil milhões de dólares –, têm companhias gigantescas como a Ali Baba e outras. O Partido Comunista Chinês está a reforçar a centralização do poder e utiliza algumas virtudes da nossa democracia, como o combate à corrupção, a meritocracia, escolhendo os melhores para as funções do partido. É uma experiência interessante e devemos ter consciência de que eles nos desafiam através de uma competição entre sistemas: autocracia mais elementos da economia de mercado versus democracias liberais mais economias de mercado.
Nasceu num país que, até ao fim da Guerra Fria, estava no fim de uma rua sem saída. Agora está no centro da Europa. Crê que continua a ser útil conhecer a história europeia da primeira metade do século XX para evitar cometer os mesmos erros fatais?
É importante lembrar a História porque compreendê-la ajuda a compreender o presente e o futuro. Mas creio que é muito mais importante concentrarmo-nos no futuro. Nós tivemos duas oportunidades extraordinárias em 1989: a perspectiva de adesão à União Europeia, quando a Cortina de Ferro caiu. Cinquenta por cento das nossas fronteiras estavam cercadas pela Cortina de Ferro. O meu primeiro circulo eleitoral como deputado foi no Nordeste, exactamente por onde passava a divisão e ninguém sabe que, ao longo da fronteira austríaca, tivemos mais vítimas – refugiados à procura de asilo, que foram assassinados ou feridos –, do que na muito mais longa fronteira entre as duas Alemanhas. Foi um dos pontos mais sangrentos.
Desde 1989, mais do que duplicámos a riqueza produzida, quadruplicámos as exportações, multiplicámos por dez o investimento interno e estrangeiro – foram tempos extraordinários para nós. As pessoas sabem isso. A adesão foi aprovada em referendo por mais de dois terços dos votos. Hoje, quando se pergunta aos austríacos se querem sair, 90% respondem que não e 10% dizem que sim. Não estamos a olhar para o passado, não somos nostálgicos, não olhamos para a monarquia ou para os bons velhos tempos, que nunca são tão bons como os pintamos. Em qualquer dos nossos países, não só no meu. Por isso, digo que nos devemos concentrar no futuro.