Nova crise a caminho?
O que aconteceu ao sistema financeiro um pouco por todo o mundo deveria tornar-se uma lição para algumas gerações.
Já passaram dez anos desde que o até aí insuspeito banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, com 158 anos de existência, colapsou. O impensável aconteceu. Será que aprendemos alguma coisa nestes dez anos? Cheguei a pensar que sim, mas a minha opinião tem mudado.
O que aconteceu ao sistema financeiro um pouco por todo o mundo deveria tornar-se uma lição para algumas gerações. Alguns sinais apontam que algo de semelhante pode acontecer num futuro próximo, nomeadamente os que têm origem nos Estados Unidos.
O colapso deste banco, bem como a compra do Bear Stearns pela JP Morgan Chase, por 10% do seu valor anterior, ou a compra do Merrill Lynch pelo Bank of America por valores irrisórios, entre outros exemplos, explicou-se pela ganância dos gestores bancários e pela falta de regulamentação e fiscalização das entidades supervisoras.
Mas o colapso deste banco marca sem dúvida o início da crise financeira mundial (conhecida como crise do subprime), que provocou que milhões de pessoas perdessem o seu emprego, empresas encerrassem e que países tivessem que ser intervencionados. A crise financeira contagiou a economia, tornou-se global e provocou um momento de clivagem na sociedade, com quebras de confiança no sistema financeiro, nos governos e nos supervisores.
A situação foi de tal forma grave que a Administração Obama nomeou uma comissão de inquérito para apurar as causas da crise, com o objetivo de evitar que no futuro sucedesse o mesmo. Em 2011, essa comissão publicou o seu relatório, sendo que claramente apontou como causas principais: a desregulamentação do setor financeiro, produtos estruturados em excesso e complexos, assim como o valor das hipotecas em relação ao valor dos imóveis claramente inflacionados. Também referiu que os prémios de desempenho dos gestores e quadros indexados aos resultados potenciavam que a todo o custo os resultados teriam que subir de ano para ano.
No tocante ao primeiro motivo, conclui-se que o setor financeiro estava mal regulamentado e que poderia a seu belo prazer e sem qualquer cuidado conceder créditos a quem entendesse, bem como realizar operações complexas por forma a artificialmente e sem nenhuma aderência à realidade económica alavancar os seus balanços e lucros. Tudo isto com a conivência e aprovação das entidades supervisoras e fiscalizadoras.
Quanto aos produtos estruturados, eram de compreensão difícil para a grande maioria dos particulares, limitando-se a assinar e a depositar o seu dinheiro. Através de contratos de securitização, os bancos titulares das hipotecas vendiam a bancos de investimento esses produtos, que por sua vez os vendiam aos particulares um pouco por todo o mundo. As próprias agências de notação atribuíam a nota máxima a estes contratos. Assim, gerava-se uma maior capacidade de o sistema financeiro conceder novos créditos, o que possibilitou que em apenas três anos o negócio dos bancos de investimento triplicasse.
Estas operações são perfeitamente legais, o problema é que a base estava minada. Com taxas de juro baixas, e discursos encorajadores do Presidente George W. Bush, o modesto cidadão norte-americano com rendimentos incertos e baixos comprou a sua casa e a sua vivenda, em detrimento do aluguer.
Não existia qualquer cuidado na concessão de crédito. A hipoteca não era concedida com base numa séria avaliação do imóvel e na capacidade do devedor em honrar a sua dívida. Não era solicitado ao devedor qualquer prova do seu rendimento, sendo que bastava que este o referisse para que o crédito fosse concedido. Também não era verificada a sua situação profissional e a regularidade dos rendimentos. Por levantamentos efetuados, concluiu-se que até a pessoas com empregos sazonais de entrega de refeições ao domicílio os bancos concederam crédito para além do real valor do imóvel, para a compra de vivendas em zonas nobres de algumas cidades dos EUA. Desta forma foram concedidos milhões de empréstimos, com base em rendimentos que não existiam e em avaliações duvidosas.
Durante anos estes bancos acumularam lucros inimagináveis, bem como os seus gestores, diretores e funcionários recebiam elevados bónus de desempenho, que estavam indexados a esses lucros, que eram provenientes das denominadas hipotecas tóxicas. Era a cultura do bónus.
Como facilmente se depreende, estávamos perante uma situação insustentável, que se agravou com a subida das taxas de juro a partir de 2005. Milhões de famílias deixaram de ter capacidade financeira para pagar os seus empréstimos e entregaram as suas casas aos bancos, que num curto espaço de tempo se viram a braços com um enorme problema. O preço do imobiliário caiu a pique por falta de compradores.
Para evitar que situações deste género voltassem a acontecer, em 2010 o Presidente Obama conseguiu a aprovação da Lei Dodd-Frank. Esta lei impõe grandes obrigações às instituições financeiras, como sejam, a constituição de reservas para grandes crises e testes financeiros de resistência.
Estava aberto o caminho para a melhoria da credibilidade e da transparência do setor financeiro, bem como para a proteção dos consumidores contra as práticas abusivas, pois também foi criado o Gabinete de Proteção Financeira do Consumidor. Paralelamente, Obama aprovou programas de estímulo à economia e reforçou os poderes das instituições de supervisão bancária para controlar as avaliações das hipotecas, a remuneração dos executivos e a má governança corporativa. Existia por esta altura nos EUA um largo consenso de que algo tinha que mudar. Pelas iniciativas levadas a cabo pelo anterior Presidente, a mudança era evidente.
A profundidade da crise, bem como a lenta recuperação da economia, promoveram a duvidosa vitória eleitoral de Trump. As crises levam ao populismo e ao surgimento de potenciais salvadores.
Em abril deste ano, os republicanos (com o apoio de alguns democratas) aprovaram um enorme retrocesso dos regulamentos de supervisão bancária que remontavam ao tempo de Obama. Agora, os bancos que detenham menos de USD 250 mil milhões de ativos deixam de estar perante uma supervisão apertada das autoridades e a grande maioria deixa de ter que reportar informações sobre o crédito concedido, bem como sobre as hipotecas. Para agravar a situação, o Presidente Trump nomeou para os organismos fiscalizadores direções que terão como missão cancelar ações de fiscalização em curso, bem como suspender a aprovada contratação de funcionários que se destinavam a intensificar ações fiscalizadoras.
As recentes tendências perigosas do populismo e do protecionismo (veja-se a recente guerra comercial entre os EUA e a China), o abrandar na fiscalização ao setor financeiro, pelo menos por parte das autoridades norte-americanas, e o implementar da política do empréstimo fácil são terrenos férteis para o despoletar de uma nova crise financeira que mesmo que comece nos EUA facilmente se tornará mundial.
Parece que os dias mais difíceis já desapareceram da consciência pública. Falta de memória ou ganância? Vale a pena pensarmos nisto.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico