Negócios da ministra do Mar levantam dúvidas em Vila Real de Santo António
Empresa de Ana Paula Vitorino foi contratada duas vezes pelo município do Sotavento algarvio. A necessidade dessas contratações, o cumprimento dos contratos e as relações da ministra com o edil social-democrata levantam dúvidas. A ministra diz que foi contratada porque é competente e que se afastou da empresa logo a seguir.
A Transnetwork, empresa criada em 2011 pela então deputada Ana Paula Vitorino, celebrou dois contratos por ajuste directo, em 2015 e 2017, com a Câmara de Vila Real de Santo António (VRSA). O primeiro só foi parcialmente cumprido e parcialmente pago. O segundo deu origem a três documentos, um dos quais se limita a reproduzir o relatório entregue dois anos antes. No total, a empresa da ministra facturou 55.820 euros ao município e à sua sociedade de gestão urbana (VRSA-SGU).
Luís Gomes, o anterior presidente da câmara e ex-líder do PSD Algarve, foi aluno de Ana Paula Vitorino no Instituto Superior Técnico, nos anos 90, e foi ele quem convidou a Transnetwork a trabalhar para a autarquia no final de 2014. Antes disso, explica o ex-autarca, a sua antiga professora já tinha prestado alguns serviços ao município por volta de 2010.
No portal dos contratos públicos (base.gov), todavia, nada consta sobre essa colaboração que Luís Gomes explica do mesmo modo que explica as posteriores contratações da Transnetwork: “A engenheira Ana Paula Vitorino é uma pessoa respeitada em todo o país na área dos transportes.” No entanto, a empresa não teve qualquer outro contrato com entidades públicas desde a sua constituição. Quanto aos 55.820 euros facturados em VRSA em 2015 e 2017, esse montante não está totalmente repercutido nas contas da empresa. As vendas e prestações de serviços declaradas nesses anos ficam-se pelos 35.799 euros.
PS E CDU contra
A três de Março de 2015, a polémica rebentou numa reunião do executivo camarário. Luís Gomes agendara para votação um ajuste directo que pretendia celebrar com a Transnetwork, com vista à elaboração de um “estudo geral de ordenamento da circulação e do estacionamento no concelho”, por 52.750 euros. Para a mesma reunião, agendou também a concessão a privados da exploração do estacionamento pago em VRSA e em Monte Gordo.
De acordo com a acta da reunião, o vereador socialista David Murta defendeu que deviam ter sido consultadas outras empresas para fazer o estudo de circulação, além da Transnetwork. Mais do que isso, declarou não compreender que “em período de ajustamento financeiro, e com o Fundo de Apoio Municipal às costas” se gastassem quase 53 mil euros, mais IVA, com um estudo que podia ser feito pelos técnicos da câmara e da VRSA – SGU. O eleito do PS “mencionou igualmente a sua estranheza” pelo facto de no mesmo dia ser submetida à câmara a concessão do estacionamento e ser adjudicada a elaboração de um estudo sobre circulação e estacionamento.
Por seu lado, José Cruz, vereador da CDU, questionou directamente o facto de a câmara pretender fazer “um ajuste directo a uma empresa unipessoal da engenheira Ana Paula Vitorino”. Em resposta, Luís Gomes defendeu que “o estudo dará pistas para que a câmara dialogue com os privados para se perceber se há bolsas privadas para se criar estacionamento alternativo ao tarifado”. Segundo a acta, o autarca do PSD acrescentou que se trata de “um estudo de tráfego não tendo a câmara técnicos adequados para o redigir”. O que ele não disse foi que a proposta da Transnetwork ainda nem sequer tinha sido entregue ao município. O documento, assinado pela actual ministra, tem data de 6 de Fevereiro.
Ana Paula Vitorino recuou
Apesar dos votos contra do PS e da CDU, as adjudicações do estacionamento e do estudo foram aprovadas, mas nem tudo ficou na mesma. Vinte e dois dias depois, a 25 de Fevereiro de 2015, Ana Paula Vitorino renunciou à gerência da sua empresa e transformou-a numa sociedade por quotas. O capital, de mil euros, passou a ser maioritariamente detido (90%) por José Eduardo Magalhães, um engenheiro sem carreira pública ou profissional conhecida. Os restantes 10% ficaram nas mãos da actual ministra e de Lídia Sequeira, uma gestora portuária que Ana Paula Vitorino nomeou para a presidência da Administração dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra em 2016.
Com esta mexida, Lídia Sequeira assumiu a gerência e foi ela quem, duas semanas depois, a 10 de Março de 2015, assinou o contrato com Luís Gomes. No clausulado ficou expresso que o estudo deveria ser entregue no prazo de seis meses e que o seu custo seria de 52.750 euros mais IVA. De acordo com o portal base.gov, porém, “apenas foi concluída uma parte do trabalho”, tendo sido pago o valor de 16.220 euros.
Segundo a actual presidente da câmara, Conceição Cabrita, que à época do contrato era vice-presidente da autarquia, este valor corresponde à primeira fase do estudo. O trabalho não foi finalizado “por acordo entre as partes”, acrescenta, tendo sido pago um quarto do valor “nos termos da proposta adjudicada”. Segundo a autarca, a empresa entregou um relatório de 58 páginas, em Agosto de 2015 [três meses depois do prazo parcelar contratado], com o resultado da primeira fase do estudo.
O documento, que a câmara facultou ao PÚBLICO, não tem data e não identifica os seus autores. Intitulado “Caracterização e Diagnóstico”, fica-se pela descrição do sistema de acessibilidades e transportes do concelho, tendo por base a informação fornecida pela câmara, “tal como previsto contratualmente”. Na introdução, o relatório nota que “poderão vir a ser efectuadas análises mais aprofundadas, nomeadamente sobre a oferta e procura de transportes públicos, bem como sobre a logística urbana, caso o município venha a disponibilizar informação mais pormenorizada”.
Estudo inacabado
Os autores explicam ainda que na “Fase 2”, que não chegou a ser concretizada, será feita “a identificação de medidas de minimização dos problemas e dificuldades de funcionamento identificados [na “Fase 1”], nomeadamente a localização e dimensionamento de parques dissuasores e medidas de melhoria global do funcionamento seguro da rede viária”.
Quase em simultâneo, mas provavelmente ainda antes da entrega do relatório da “Fase 1”, a maioria camarária aprovou, a quatro de Agosto de 2015, o Regulamento Geral de Trânsito do concelho de VRSA. Nessa altura já se verificava alguma contestação à recente entrada em vigor da concessão do estacionamento tarifado, tendo o vereador José Barão (CDU) afirmado: “O processo está todo invertido, uma vez que primeiro foram colocados os parquímetros, depois é aprovado o regulamento e só no fim é que será elaborado um estudo de trânsito.”
Em todo o caso, o trabalho da Transnetwork ficou por ali e em Novembro Ana Paula Vitorina ascendeu ao lugar de ministra do Mar. Passados seis meses, quando Lídia Sequeira assumiu a direcção dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra - conforme o programa Sexta às Nove, da RTP, revelou na semana passada –, a gerência da Transnetwork passou para o sócio maioritário, José Eduardo Magalhães.
Pelo que se depreende das contas da sociedade, a sua actividade tornou-se então ainda mais escassa, com vendas de apenas 10.550 euros em 2016 e sem qualquer contrato com entidades públicas. Já em Julho do ano passado, porém, VRSA voltou ao radar da empresa, desta vez com um ajuste directo com a VRSA-SGU, presidida pela sucessora de Luís Gomes e detida a 100% pelo município. Objecto: elaboração do “estudo geral de ordenamento da circulação e do estacionamento no centro histórico de VRSA”. Enquanto o contrato de 2015 visava o concelho inteiro, este ficava-se pelo centro histórico da cidade.
Talvez por isso o preço caía para 39.600 euros e o prazo de execução para 30 dias. Segundo Conceição Cabrita, o estudo foi entregue a 11 de Agosto e contém três relatórios que foram igualmente disponibilizados ao PÚBLICO: um de 58 páginas, correspondente à primeira fase do estudo; outro de 42, relativo à segunda fase; e um terceiro de 41, com a apresentação do trabalho, “perfazendo todo o estudo um total de 141 páginas”.
Um relatório para dois contratos
O primeiro faz-se notar por ter o mesmo número de páginas do relatório da “Fase 1” do contrato de 2015. Vendo de perto, constata-se que os dois são um único. O de 2017 é apenas a reprodução integral do de 2015, substituindo-se apenas as referências ao “concelho de VRSA” pela expressão “centro histórico de VRSA”.
O segundo, relativo à “Fase 2”, é um documento generalista, sem qualquer trabalho de campo, e relativo, quase em exclusivo, a estacionamento e transportes públicos. Inclui “propostas de melhoria” da situação existente, mas é praticamente omisso em relação aos problemas da circulação automóvel, fluidez do trânsito, semaforização e sinalização rodoviária. Por fim, o terceiro documento é um power point com 41 diapositivos que sintetizam as 42 páginas do segundo relatório.
Questionada sobre o resultado prático dos trabalhos efectuados pela empresa, Conceição Cabrita responde assim: “O município e a VRSA - SGU aplicaram várias medidas que vão de encontro ao proposto no estudo (…) nomeadamente, levaram a cabo diversas reuniões quer com comerciantes quer com comissões de comerciantes com vista à apresentação de propostas de alteração do contrato de concessão do estacionamento.” Por outro lado, afirma, “foram também mantidas reuniões com a empresa de transportes públicos que opera no concelho (EVA Transportes) no sentido de alterar trajectos e implementar melhorias no autocarro social”. Por fim, explica, “foram rebaixados diversos passeios, foi cortado o trânsito na zona pedonal do centro histórico e está em curso uma proposta de alteração do regulamento de trânsito municipal”. Refira-se que o estudo nada diz sobre o rebaixamento de passeios, nem sobre o trânsito na zona pedonal.
As explicações da ministra
Contactada pelo PÚBLICO, Ana Paula Vitorino respondeu detalhadamente, afirmando que no final de 2014 a sua empresa foi convidada pela câmara a apresentar uma proposta para fazer um estudo e que a mesma foi por si subscrita “em 5 de Novembro de 2014” – embora a proposta facultada pela autarquia e assinada pela então empresária tenha a data de 6 de Fevereiro de 2015.
A 26 de Fevereiro, acrescenta, decidiu ceder as suas quotas, ficando apenas com 5% e renunciando à gerência. Desde a constituição, em 2011, até essa data, “a actividade da empresa foi quase exclusivamente dedicada à edição e publicação da revista Cluster do Mar, tendo publicado oito números entre 2012 e 2014, não tendo existido nenhum contrato de consultoria com o Estado ou com municípios.”
Ana Paula Vitorino afirma que depois de Fevereiro de 2015 deixou de acompanhar a Transnetwork, não tomou “qualquer decisão”, nem coordenou ou participou em qualquer estudo ou projecto da empresa e não recebeu honorários. “A partir daí não tive conhecimento do desenvolvimento dos trabalhos, data de entrega dos relatórios e conteúdo dos mesmos.” Depois de se referir ao seu currículo académico e profissional, a ministra diz ter a convicção de que o convite que lhe foi feito pela câmara de VRSA “se deveu à [sua] competência e experiência na área dos transportes, reconhecida internacionalmente”.
Ao contrário da imagem que agora apresenta da empresa que criou - como sendo quase exclusivamente dedicada à publicação de uma revista de dois em dois meses -, Ana Paula Vitorino descreve a Transnetwork como uma empresa dinâmica e multifacetada na sua biografia oficial, disponível no Portal do Governo. Referindo-se a si própria, diz aí que “foi partner e responsável técnica da Transnetwork, empresa de consultoria, formação, planeamento, estudos e projectos nas áreas de transportes, portos, logística, infra-estruturas, gestão, economia, engenharia, arquitectura, construção e planeamento, com trabalhos desenvolvidos em Portugal, África e América Latina desde 2011”.
A acreditar nesta caracterização da empresa e nas contas por ela apresentadas ao fisco nos últimos anos terá de se concluir que a maior parte da sua actividade foi exercida probono, em regime de voluntariado. Isto porque a sua facturação foi sempre residual, ficando-se no conjunto dos anos 2015, 2016 e 2017, os únicos cujas contas estão acessíveis, pelos 46.329 euros - ainda assim abaixo dos 55.820 que facturou em dois daqueles anos em Vila Real de Santo António.