Viagem aos lugares e histórias de um (FC) Porto sentido

Uma barbearia, um cemitério e uma confeitaria podem ajudar a contar a história de um clube? Para assinalar os 125 anos do FC Porto e cinco anos do seu museu, uma exposição percorre a cidade para contar a história dos azuis e brancos. Duas biografias que não se escrevem em separado

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O som metálico dos eléctricos ressoava nos carris, o reboliço dos autocarros parecia contínuo. E no interior do edifício do São João Cine, a insonorização exemplar não o salvava do ruído exterior, prova de vida de uma cidade povoada. A sessão cinematográfica da noite terminara e Maria Amélia Canossa esperava pacientemente que o silêncio abraçasse o Porto. Era 31 de Março de 1952 e na majestosa casa, o actual Teatro Nacional de São João, ia gravar-se em fita magnética o hino do Futebol Clube do Porto. “Quando tudo ficou calminho, montou-se a orquestra e toda a equipa, abriram-se os cortinados e cantei naquele palco fantástico. Estivemos lá até às cinco da manhã.”

Maria Amélia tinha então 18 anos e não imaginava estar a gravar história. O hino ali registado, fonte de receita para a construção do Estádio das Antas, inaugurado dois meses depois, fez-se pele do clube e ainda hoje ecoa no Dragão, assim como no coração da fadista nortenha: “Aos 85 anos ainda me arrepio e fico com lágrimas nos olhos, tal e qual como aconteceu quando o ouvi pela primeira vez.”  

O episódio associado à geografia do grande teatro da cidade é uma das mini-histórias que o Futebol Clube do Porto escolheu para assinalar os 125 anos do clube e cinco do seu museu, cumpridos esta sexta-feira. Até 26 de Outubro, a exposição Histórias na Cidade, tecida em 24 espaços emblemáticos e instituições, quer devolver à urbe o que dela tem recebido. Desse modo, mostra que as narrativas do futebol se escrevem para lá dos 90 minutos e de um hectare de relva.

Criar um clube de futebol em finais do século XIX não era tarefa simples. Por essa altura, as manifestações desportivas na cidade resumiam-se a corridas de bicicleta, invento do Clube Velocipedista do Porto, e de cavalos, com o cunho do Oporto Hunt Club. Mas o risco foi assumido por António Nicolau d’Almeida, jovem comerciante e sócio de uma empresa exportadora de Vinho do Porto: a 28 de Setembro de 1893, nascia o Football Clube do Porto – Sociedade Sportiva.

Ao projecto juntaram-se, pouco a pouco, “gentlemen e pessoas distintas da cidade e da cultura”, num plano que não se fechava num campo: “Nessa altura, pelo estilo de vida, era muito fácil estabelecerem-se relações com as cidades”, aponta Jorge Maurício Pinto, director de programação do Museu Futebol Clube do Porto, instituição que vem coleccionado prémios desde a sua abertura. A cidade e o clube, diz, partilham mais do que um nome: têm biografias de fios atados, histórias urdidas a euforias e lágrimas.

Para a exposição selecionaram-se 24 lugares da cidade por onde a história do clube passou — mas “podiam ser outros 24 ou 240”, brinca Jorge Maurício Pinto a propósito das “estórias” do clube entranhadas na cidade. Por causa dela, a ideia de uma “sequela” ou de tornar permanente a iniciativa agora arquitectada, já lhe anda a bailar no pensamento. Mas isso fica para mais tarde.

Através do roteiro traçado num mapa do concelho, portuenses, portistas ou mesmo turistas podem conhecer, viajando pelas ruas, variados relatos e referências do clube. Admirar, na Câmara Municipal do Porto, a Medalha de Valor Desportivo que a autarquia criou em 1935 para oferecer ao clube como sinalização do primeiro campeonato nacional. Reler num painel de azulejos da Torre dos Clérigos o poema Aleluia, escrito por Pedro Homem de Melo como dedicatória ao FC Porto. Passear pelos Jardins do Palácio de Cristal, onde os azuis e brancos chegaram a ter um espaço de diversão através do qual angariavam fundos para construir as Antas. Por templos de memória mais evidentes, de relações umbilicais com o clube, ou por paragens mais improváveis, a viagem faz-se por um outro Porto.

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O barbeiro azul e branco

Rua de Ramalho Ortigão, número 16. Acácio Branco pára a tesoura por uns segundos para se apresentar: “Portista de nascença, dragão por natureza.” Fez-se barbeiro ainda menino, quando, com o “mestre António, que tocava violino como gente grande”, percorria os campos de Cinfães (“no tempo em que Cinfães se escrevia com S”) de malinha na mão, para cortar o cabelo aos lavradores. Tinha 12 anos quando se rendeu à cidade grande. E não mais de lá saiu.

Chegou à Barbearia Garrett em 1958, um ano depois da sua abertura. No prédio em frente, José Maria Pedroto geria o café Apolo desde o início da década. Fizeram-se amigos. Acácio, bata e cabelo brancos, cortou o cabelo do antigo jogador e treinador durante décadas. Palavra puxa palavra e a sua barbearia foi-se tornando poiso de outros atletas e técnicos — “Barrigana, Virgílio, Carvalho, António Morais, Osvaldo Silva”, enumera. “Era tanta gente! Se fosse a falar de todos não cabia no texto”, desafia de sorriso estendido. Os presidentes — “todos menos o Pinto da Costa” — também por ali passaram. E, sem notar, o homem com a quarta classe que jogou futebol amador no Invicta de Massarelos foi ganhando fama: “Devia estar exposto num museu.”

A conversa fugia quase sempre da bola para cair em brincadeiras e graças desfiadas a rodos. Não por uma paixão desbotada pelo futebol — que até o levou a Viena em 1987, na companhia do presidente da Câmara Municipal do Porto, Fernando Cabral. Mas talvez para fugir das rotinas. E pela sua vocação particular para o humor. “Quer que conte outra anedota?”

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Lugar mais dado a conversas longas sobre futebol era a Confeitaria Petúlia. Nos anos 70 e 80, o salão de chá camuflava-se de local de “convívio” e “troca de ideias” sobre o futuro do clube depois de as portas fecharem ao público. Dentro, jogadores e dirigentes deixavam-se ficar sem relógios e sem pressas. Passaram por ali “o presidente Pinto da Costa, Pedroto, Hernâni Gonçalves, Pôncio Monteiro, Sardoeira Pinto, António Morais”, conta Ilídio Pinto, a ler um papelinho auxiliar de memória.

Ilídio, “o senhor hóquei”, agora com 82 anos, fez-se portista ainda menino, ao trocar Cabeceiras de Basto pela cidade. Foi sócio do restaurante Peninsular e abriu a Petúlia em 1972. Ainda hoje a mantém. As tertúlias, recorda a mulher, Maria Amélia Pinto, “eram até às duas ou três da manhã”. E elas não entravam: “Eram só homens. Só descansava quando ouvia a chave a abrir a porta.” À custa do Futebol Clube do Porto, o marido “conheceu todos os aeroportos, estádios e pavilhões”, recorda sorridente. “Viajávamos muito por causa do hóquei e do futebol. Foram tempos bonitos.”

Pedroto: perder nem nas cartas

Visita quase diária era a de Pedroto, o “Zé do Boné”, quatro vezes campeão pelo FCPorto. “Tinha uma mesa reservada”, conta Ilídio a apontar para o lugar do antigo jogador e treinador que quebrou um longo jejum (78/79). “A mulher costumava dizer que o carro dele sabia de cor o caminho para aqui”, lembra Maria Amélia. De Pedroto guardam memórias que se esticam numa melancolia feliz. E a paródia-tragédia que era vê-lo perder. “Não gostava nada”, conta Ilídio perante o sorriso cúmplice do filho, Eurico Pinto, membro da direcção do FCPorto e responsável pelo hóquei em patins.

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Ilídio, o homem que mais títulos de hóquei em patins trouxe para o clube, recorda com saudade os estágios da equipa de futebol no hotel Mirassol, em Miramar. “Levava bolo-rei e passávamos horas a jogar cartas. O senhor Pedroto adorava jogar a Ricardina, e alterava as regras. Não podia perder, nem nas cartas.”

Ainda hoje, na data do falecimento do “mestre” Pedroto, Maria Amélia faz o caminho até ao Cemitério de Agramonte para “acender uma luzinha” por ele. Na secção 41, jazigo n.º 2687, encontra-se o mausoléu do FC Porto, edificado em 1968, na presidência de Afonso Pinto de Magalhães. Vigiado por um anjo esculpido por João Charters de Almeida, repousam os restos mortais de nove personalidades e jogadores míticos como Pavão e Pinga.

Maria Amélia Canossa preserva o entusiasmo de menina quando fala de bola. Lembra-se bem dos jogos a que o pai e o avô a levavam no Campo da Constituição. Em casa, tudo era adepto do Porto. E ela não se imagina de outra maneira. Cresceu, fez-se “portista e artista” — e quis usar a voz para ajudar o clube. “Faço tudo pelo Porto”, garante. Por causa disso, iniciou um dia uma conversa com a diva do fado Amália Rodrigues, com quem partilhou o palco algumas vezes: “Perguntei-lhe se podia colaborar a angariar fundos para o estádio das Antas”, recorda. “Ela disse-me: ‘Tu és boa rapariga e até simpatizo com esse clube. Fala lá que a gente marca uma data.’” Aconteceu a 21 de Junho de 1951. No Coliseu do Porto.

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