Só 37% dos condenados por crimes sexuais vão para a prisão

Dados mais recentes do Ministério da Justiça, relativos a 2016, mostram que pena de prisão suspensa foi aplicada em 58% das condenações por quatro tipos de crimes sexuais.

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Paulo Pimenta

Os tribunais portugueses aplicaram penas de prisão suspensas em 58% das 404 condenações por crimes sexuais em que são conhecidas as sanções decretadas. Neste universo, só 37% dos agressores foram condenados a penas de prisão efectiva e 5% a penas mais leves, como prisão substituída por multa ou trabalho comunitário. Os números são do Ministério da Justiça e dizem respeito às decisões tomadas pelos tribunais de primeira instância em 2016, os dados mais recentes, em julgamentos por crimes de violação, coacção sexual, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência e abuso sexual de crianças.

Os dados foram pedidos pelo PÚBLICO na sequência do polémico acórdão da Relação do Porto, que confirma uma pena de prisão de quatro anos e meio, suspensa, para o barman e o porteiro de uma discoteca de Vila Nova de Gaia que violaram uma cliente quando esta se encontrava inconsciente na casa de banho do estabelecimento. A Relação do Porto entendeu que “a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação)”. A ilicitude do que foi feito “não é elevada”, uma vez que “não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência”, justificaram os dois juízes.

A decisão deu origem a uma onda de indignação que levou à marcação de diversas manifestações, a primeira das quais realizou-se esta quarta-feira no Porto. Cerca de 400 pessoas concentraram-se ao lado da Relação do Porto, num protesto convocado por grupos feministas. As organizadoras desafiaram o Governo a lançar um debate nacional sobre a forma como os tribunais julgam crimes de violência de género. “Vivas. Livres. Unidas. Fim da justiça machista”, lia-se numa faixa exibida.

De volta aos números, constata-se que nos casos de violação consumada ou tentada a percentagem de prisão efectiva é mais alta do que nos de abuso sexual de crianças. Se no primeiro tipo de crimes a percentagem de condenados a cumprir pena na cadeia é de 60%, nas situações de abusos a menores, consumados ou tentados, desce para os 29%.

Dos 270 arguidos condenados por abuso sexual de crianças em 2016 — houve mais seis condenados, mas não são conhecidas as penas aplicadas, já que, como são inferiores a três, estão protegidas pelo segredo estatístico — 64%, ou seja, 173 foram condenados a penas de prisão suspensas. A maior parte implicava que os arguidos cumprissem determinadas regras ou tivesse um plano de readaptação social.

Nos casos de coacção sexual, — um crime que difere da violação por não implicar actos de penetração — em que a pena máxima é de oito anos de cadeia (na violação o máximo é 10 anos) as condenações a prisão efectiva são tão residuais, que estão protegidas pelo segredo estatístico. Há a certeza, contudo, que das 32 condenações por este crime em 2016 (incluindo as tentativas e os casos agravados) 23 foram penas de prisão suspensas.

Já nos casos de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, o crime por que foram punidos os agressores que trabalhavam na discoteca de Gaia, a percentagem de condenações a prisão efectiva fica nos 53% e a penas suspensas nos 47%. Apesar de em 2015 e 2014 o número absoluto de condenações por estes quatro crimes sexuais ter descido (de 465 para 341), em termos percentuais a proporção de penas de prisão efectiva e suspensas quase não se alterou. Em 2015, foram enviados para a cadeia 40% dos agressores condenados. No ano anterior, a percentagem ficou em 39%.

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Isabel Ventura, que na tese de doutoramento analisou centenas de acórdãos de violação e estudou a história deste crime na legislação portuguesa desde a Idade Média, não se surpreende com a frequência de penas suspensas. A investigadora acredita que parte da magistratura ainda desvaloriza os crimes sexuais e que tal acontece por motivos históricos. “Até 1982, se uma mulher virgem com pouca idade fosse violada e o agressor se casasse com ela o procedimento criminal cessava”, recorda. Considerava-se, continua, que o que a mulher perdia com a violação era o acesso a um bom casamento e com esse prejuízo reparado, já não fazia sentido punir o agressor.

A investigadora realça que durante séculos, as leis eram feitas por uma elite que não tinha grandes receios de protecção pessoal, mas pretendia sobretudo proteger a sua propriedade. “Daí que os crimes contra a propriedade eram punidos de forma mais pesada do que os crimes contra as pessoas”, sublinha Isabel Ventura. A situação alterou-se na letra da lei nos últimos anos, mas nem sempre se consegue que os juízes respeitem o seu espírito, defende.

A professora de Direito Penal, Conceição Cunha, da Universidade Católica, estuda os crimes sexuais e também tem a impressão de que os tribunais aplicam com bastante frequência penas suspensas, nomeadamente, em casos de abusos sexuais de crianças. “Concordo com a privação da liberdade como último recurso. Porém, face a crimes graves, como é claramente o caso de crimes sexuais, que criam grave instabilidade na comunidade, danos dificilmente reparáveis (por vezes mesmo irreparáveis) nas vítimas e em que se verifica também, com frequência, a reincidência, há que ter particular prudência na adequação de uma pena suspensa”, considera.

O que justifica a tolerância perante este tipo de crimes? “Porventura porque a liberdade sexual e o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera da sexualidade ainda não é um bem jurídico a que se dê o devido relevo… ainda é por vezes subvalorizado por comparação com a vida, a liberdade e, até, a defesa da propriedade.” A professora universitária recorda que só em 1995 o Código Penal passou a tutelar “o bem jurídico liberdade sexual”, antes o que estava em primeiro plano eram noções de pudor e moralidade.

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A advogada Leonor Valente Monteiro, que trabalha na área da violência de género há mais de uma década, também não se surpreende com o nível de penas suspensas. Mas faz questão de sublinhar que a questão das penas perde alguma importância face ao “número irrisório” de casos que chegam a julgamento comparando com as queixas. “Principalmente nos casos de abusos sexuais de crianças, quando os actos não deixam marcas”, sublinha. A tendência, diz, é para valorizar a palavra do adulto em detrimento da versão da criança.

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