Há uma lixeira a céu aberto em Lisboa e ninguém fala dela
Está na hora de sermos conscientes da ecologia sonora. Temos de começar a exigir um planeamento urbano que seja capaz de pensar o som. Algo inexistente em cidades cada vez mais ruidosas, como acontece neste momento em Lisboa.
Protestamos quando o lixo se acumula nas ruas. Reciclamos, porque acreditamos que dessa forma contribuímos para um planeta mais verde. Revoltamo-nos contra quem põe em causa o aquecimento global. Começamos a sancionar socialmente quem utiliza plásticos desnecessariamente. Mas quando se trata de ruído, barulho, música alta e ininterrupta, em lugares públicos ou privados, condescendemos, encolhemos os ombros, é a vida. Quando somos atingidos directamente, até podemos irritar-nos. Mas o nível de consciência social é quase nulo.
E, no entanto, existe uma lixeira a céu aberto, em forma de ruído, no coração de cidades como Lisboa. Pode não ser malcheirosa, mas é igualmente nociva, ao nível da qualidade ambiental, das perturbações na comunicação, da saúde física e do bem-estar psicológico. Vivemos em urbes tiranizadas pelo ruído, com música alta nas ruas, centros comerciais, lojas, esplanadas, terraços, restaurantes ou cafés, no meio de motores, trânsito, alarmes, aviões, aparelhos de ar condicionado, buzinas, berbequins, altifalantes ou animações sortidas em qualquer esquina. Até a falar nos esganiçamos. Estamos sempre a tentar falar alto para nos sobrepormos à TV no café ou à música na esplanada. Ainda não estão a perceber? Não espanta. Estamos todos meio surdos. Desfocados e cansados. Às vezes não percebemos muito bem porquê e a razão é a fadiga auditiva.
Então porque é que somos tão insensíveis colectivamente em relação ao assunto? Porque é que a cacofonia, a chinfrineira se transformaram no novo normal? Será que é difícil lidar com o silêncio (ou será com a solidão?) e talvez por isso vejamos a generalidade dos restaurantes e cafés munidos de televisões e toda a gente a olhar na sua direcção? Ou será porque interiorizámos que sendo barulhentos passamos a ideia de que somos bem sucedidos, e estamos a desfrutar ou somos bem-dispostos?
Um pouco de tudo, talvez. Essa consciência ambiental sonora já é uma característica de algumas cidades. Em Roterdão entra-se na estação central da cidade, milhares de pessoas, altifalantes, motores e máquinas e, no entanto, apetece estar ali. Não porque o ruído seja inexistente. Mas porque é manipulado para nem darmos por ele, pela própria concepção e design da área, imaginada para termos uma relação mais ecológica com o bulício, a cidade, o quotidiano. E, de repente, aquilo que por norma é muito barulhento transforma-se em algo confortável.
Aqui ainda vivemos na idade da pedra. Os bairros do centro de Lisboa estão em festa constante nos últimos tempos. Nos meses Primavera-Verão então é um corrupio. Como outros fenómenos que têm vindo a ocorrer na cidade, tudo isso se tem vindo a agravar. Entendamo-nos. Nada contra festas, celebrações ou música. Da mesma forma que percebo que quem habita em bairros históricos não pode esperar viver como se estivesse num mosteiro. Mas existe oito e oitenta. E o oitenta está mesmo aí no meio de nós. Está na hora de sermos mais conscientes em relação à ecologia sonora. Temos de começar a exigir um planeamento urbano que seja capaz de pensar o som. Arquitectos que ponderem sobre ele a partir dos espaços onde operam. E lugares públicos e privados que sejam capazes de o trabalhar com qualidade. O som tanto pode afectar negativamente, como pode ser revertido em melhor qualidade de vida.
Não basta criar legislação em catadupa, para não ser aplicada, ou limitadores sonoros, infrutíferos no caso da música ao ar livre com variáveis de movimento, como se fossem a solução, quando já são a expressão do problema. A questão é estrutural. Tem que ver com a cidade que queremos. Apenas direccionada para um vector de desenvolvimento e dirigida para certos segmentos socioculturais? Queremos transformar Lisboa num parque de diversões sem comunidade e população residente?
É necessário encontrar soluções integradoras. Não basta herdar lógicas esgotadas de planeamento, criando zonas demarcadas, quando a lógica deveria ser a coabitação proporcionada, entre funcionamentos diurnos e nocturnos e entre esferas sociais, culturais e económicas diversas.
Exemplos? Nos últimos tempos, com os bairros históricos a sofrerem dos excessos do turismo, alguns espaços de entretenimento nocturno têm sido deslocados para a zona ribeirinha entre o Cais do Sodré e Alcântara. Aí, a liberalização é total, com o Porto de Lisboa e a edilidade a permitirem que discotecas ao ar livre funcionem até de manhã. Basta perceber um pouco de som para entender que, a céu aberto, a música propaga-se a centenas de metros, sendo devolvido às zonas altas das zonas habitacionais.
Não se trata apenas do direito a descansar (como declarava Fernando Medina na semana passada a propósito do caso Adamastor, numa referência aos moradores da zona, esquecendo que ali perto a edilidade permite que funcione há meses o terraço-Rooftop The Garden, que é uma impensável discoteca a céu aberto) mas a qualidade de vida: ler, conversar, estar, namorar ou ouvir música sem ter de estar a levar com a que não se deseja.
Neste, e noutros assuntos, quem governa parece estar sempre a reagir. É preciso uma gestão estratégica. Identificar tendências e antecipar soluções. Ampliar os modos de governação, com cooperação e participação. E aí entram os cidadãos, que são também políticos e parecem esquecer-se disso. Por vezes enredamo-nos na “partidarite”, na herança de uns e na culpa de outros, e daí não saímos. Há pouca política, mas também pouca cidadania, que tem de se envolver, mobilizar-se e actuar mais.
É preciso coragem e inteligência para preservar a cidade. Da voragem. Da ignorância. Da cacofonia. Há uns anos, dizia-se que Lisboa se poderia tornar na nova Barcelona. A verdade é que nos últimos tempos a urbe espanhola tem tentado corrigir desequilíbrios, aprendendo com erros, impondo políticas correctivas e acima de tudo emerge uma cidadania diligente e resiliente. Claro que não foram superados muitos problemas. Muitas destas dinâmicas são globais. Mas Lisboa parece-se neste momento mais com Ibiza do que com Barcelona. Por paradoxal que pareça, talvez tenha chegado a hora de os cidadãos fazerem mais barulho para o conter.