A Praia de Manhattan: a violência essencial da América a partir de Nova Iorque na II Guerra
O primeiro romance histórico de Jennifer Egan é uma balada sobre Nova Iorque a partir do mar e centrada numa violência que a autora diz estar na génese da América. Chama-se A Praia de Manhattan e vai aos limites da sobrevivência, da solidão, entrando nas sombras mais íntimas.
“Parece que todas as ruas de Nova Iorque levam a Melville.” Jennifer Egan segura uma caneca entre as mãos. Acabou de trincar um biscoito e acomoda-se na poltrona junto à janela. Vai bebendo chá, e o corpo, alto e esguio, forma um N no cadeirão, muito gasto, junto à janela. Parece retirado de uma mansão vitoriana e contrasta com as leggings e os ténis de corrida que a escritora tem calçados. Lá fora cai uma morrinha de fim de Abril. Ainda fria. É naquele espaço atulhado de papéis que lê e escreve. Fica no último andar de uma town house numa rua tranquila de Clinton Hill, casas de três ou quatro pisos, da mesma época, janelas altas e um pequeno pátio com floreiras onde há tulipas a abrir. É um bairro de classe média-alta. Perto de restaurantes, pequenas mercearias, jardins, estações de metro. A gata Cuddles aparece e instala-se no topo da poltrona, colando o focinho ao vidro. Veio para ficar. Se seguíssemos os olhos de Cuddles, talvez um quilómetro e meio em linha recta, chegaríamos aos estaleiros navais de Brooklyn, e à água. O que Jennifer Egan também queria dizer com a frase inicial é que parece que todas as ruas de Nova Iorque levam ao mar.
Nova Iorque é a grande protagonista do mais recente romance de Jennifer Egan. Não a Nova Iorque da Broadway, do Village, da cena artística ou financeira. A Nova Iorque de Egan é a da água, elemento pouco óbvio quando se pensa no que define a grande metrópole americana e leva a escritora, depois de muita pesquisa e escrita, a confessar que passou a olhar de modo diferente para a cidade depois do livro. “Pegue num mapa, veja como no fim quase todas as ruas, depois de mais ou menos encruzilhas, há água.” A Praia de Manhattan desperta para essa espécie de perenidade líquida que envolve Nova Iorque. É um romance histórico, o primeiro no género de uma autora que já escreveu no estilo gótico, e a quem chamaram pós-modernista. A acção situa-se na maior cidade dos EUA durante a II Guerra, com destaque para os estaleiros de Brooklyn — os maiores estaleiros de reconstrução dos navios de guerra dos Aliados. “É uma meditação sobre a água”, sintetiza, apossando-se da ideia de Melville que escolheu para epígrafe. “Sim, como todos sabem, a meditação e a água estão casados para todo o sempre.”
É isso, mas não é só. A Praia de Manhattan é também sobre a intimidade e o secretismo subjacentes à normalidade do quotidiano; sobre uma violência — efectiva e/ou latente — que parece fazer parte da identidade americana desde o genocídio dos povos nativos.
“Esse período não me parece tão distante quanto pensava. Há uma violência que é muito parecida à que se cometeu aos índios americanos quando chegámos. No livro sobressai essa violência subterrânea, essa brutalidade que faz parte da nossa constituição”, afirma, acrescentando que a consciência disso veio com clareza ao longo da pesquisa e no longo processo de escrita. Mais de dez anos ao todo, em que teve tempo para escrever e publicar romances, como o premiado A Visita do Brutamontes (Quetzal, 2010, Pulitzer em 2011).
Sete anos depois surgiu este romance em tudo diferente. A estrutura fragmentada do anterior é substituída por uma fórmula conservadora, inspirada nos romances do século XIX, para criar uma heroína, também ela clássica, Anna Kerrigan, a primeira mulher mergulhadora nas docas de Brooklyn. É uma mergulhadora civil; a função é ajudar a reparar os navios de guerra. Até aí, Anna era mais uma entre muitas mulheres cujo trabalho era produzir peças em série numa fábrica para que outros descessem às águas e as pusessem no sítio devido. Teve noção da monotonia do trabalho no dia em que subiu ao escritório do chefe e avistou o oceano. “Anna aproximou-se de uma janela. À intensa luz do sol de finais de Outubro, o Estaleiro Naval dispunha-se diante dela com a precisão de um diagrama: havia navios de todos os tamanhos atracados, quatro a quatro, em cais que lembravam forquilhas. Nas docas secas, os navios estavam presos por centenas de cordas de fibra, como Gulliver amarrado à praia. A grua de torre tipo cabeça de martelo brandia o punho para leste, a oeste, assomavam as armações das carreiras de construção. E à volta de tudo aquilo, as vias-férreas faziam intricadas carreiras espirais de cornucópias.”
Esta é Anna Kerrigan, mulher cuja vida é moldada por dois homens, as outras figuras centrais do livro: Eddie, o pai que a abandonou em criança, e Dexter Styles, um gangster aceite na alta sociedade, dono de clubes nocturnos, que lhe queria dar um emprego. Há ainda Lydia, a irmã de Anna, uma rapariga muito bonita presa num corpo doente, e Agnes, a mãe de ambas, antiga bailarina das Follies. Estas mulheres servem também a Egan para dar um retrato do um trágico feminino aceite com a naturalidade dos tempos em que existia.
São as linhas gerais de um livro que aprofunda a complexa rede de ligações, pactos, cumplicidades e interditos que permitiam fazer a sociedade funcionar, onde cabem o crime organizado, os sindicatos, a relação entre dinheiro velho e dinheiro novo, a imigração, o sexismo, o poder, os silêncios e o modo como a cidade se foi transformando.
Por exemplo, o edifício a partir do qual Anna viu o mar continua a existir. É o numero 77 em Brooklyn Navy Yard. Há poucos anos era um prédio em ruínas. Agora é um moderno complexo de habitação e comércio entre Williamsburg e Vineger Hill, dois dos bairros mais caros daquela zona, à beira do East River. “Estive lá em 2005”, conta Jennifer, “ainda lá estavam os mapas nas paredes, o telhado ameaçava ruir, não havia nada à volta a não ser escombros e lixo.” Hoje o imobiliário e o turismo disputam a vista privilegiada para Manhattan, a preços que são quase os de Manhattan.
Falar das sombras
Voltemos ao mundo de sombras onde Egan situou o romance. O mundo como o definiu o poderoso patriarca da família de Harriet, a bela e rica mulher de Dexter, num almoço de domingo no início da década de 1940, perspectivando para a América um futuro mais radioso depois da Guerra “Vejo este país a ascender a uma altura que nenhum outro ocupou na história — afirmou baixinho —, nem os romanos. Nem os carolíngios. Nem o Genghis Khan, os tártaros ou a França do Napoleão. Aha! Vocês estão todos a olhar para mim como se eu já estivesse com um pé no hospital dos maluquinhos. Como é que é isso possível, perguntam. Porque o nosso domínio não vai nascer da subjugação de outros povos. Vamos emergir desta guerra vitoriosos e incólumes e vamos transformar-nos nos banqueiros do mundo. Vamos exportar os nossos sonhos, a nossa língua, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Que se vai provar irresistível.”
Assim foi. Ou quase. As palavras de Egan na boca de uma das suas personagens querem alertar para o paradoxo. A que soam aos ouvidos da contemporaneidade?
“Quando o 11 de Setembro acontece, sente-se que é realmente um acontecimento importante nessa trajectória do poder americano em que abusámos muitas vezes de muitas formas, como muitas entidades com poder acabam por fazer. É muito difícil usar poder de forma responsável. Não fizemos isso, e de certeza que não o fizemos depois do 11 de Setembro. Muitos americanos interrogam-se acerca de como o estado do mundo está e de como será. O medo da diminuição da América é uma coisa que muito americanos sentiram depois do 11 de Setembro e continuam a sentir. Serem diminuídos é muito assustador para os americanos”, afirma Jennifer Egan, remetendo para o dia 11 de Setembro de 2001, o momento da génese deste romance.
Terá vindo daí o impulso de escrever A Praia de Manhattan? Egan sabe que veio de uma curiosidade pela “atmosfera” da cidade durante a II Guerra que lhe pareceu intensificar-se depois do 9/11. “Nos dias que se seguiram, a cidade à noite parecia uma zona de guerra. Foi chocante. O medo de réplicas, de mais ataques. Enquanto americanos não tínhamos uma memória colectiva viva de guerra no nosso território.” Também durante a II Guerra existira medo. Por exemplo, de uma invasão pelo mar. Queria escrever sobre isso, mas não sabia como. Parecia-lhe demasiado ambicioso. Começou a investigar. Juntou mapas, livros, fez entrevistas a quem tinha memória desses dias, leu romances do século XIX, de início do século XX. Tudo sobre Nova Iorque. “Antes de qualquer personagem, de qualquer enredo, de qualquer estrutura, houve um lugar num tempo. É assim que tudo começa com os meus livros e neste em particular.”
Pousa no tabuleiro a caneca que tinha nas mãos e pega num bloco de folhas A4. “Está a ver isto? É o terceiro caderno do próximo livro”. Escreve o primeiro esboço sempre à mão, uma escrita quase limpa de emendas, quase nunca há uma frase rasurada. Passa as folhas para que se veja a caligrafia, as poucas hesitações. “Escrevo o primeiro esboço de modo impulsivo e instintivamente, quase como num improviso. Sigo os impulsos. Alguns são interessantes, a maior parte são chatos e maus, mas sinto por onde devo ir, que tipo de material sou capaz de criar. Não consigo escrever só a partir do pensamento. E nunca diria uma coisa como: ‘Esta é a história, vou delineá-la e escrevê-la.’ Não sei fazer isso. Só enquanto jornalista.”
Continua a escrever reportagens e ensaios críticos, sobretudo no New York Times. “Aí, sim. E escrevo tudo no computador, porque é um empreendimento muito mais analítico, onde tento comprimir a realidade como a vi e torná-la disponível aos leitores em geral. Mas com ficção, no primeiro esboço, tento descobrir o mundo acerca do qual vou escrever. É espontâneo. E é terrível. Só se torna vividamente claro quando o passo para computador. No caso d’A Praia de Manhattan isso aconteceu um ano e meio depois de ter começado a escrever. Todo o trabalho exigente começa depois. É aí que começo a cogitar sobre o que parece que pode ser e que passos preciso de dar para chegar lá.”
Para Jennifer Egan, forma e história têm de trabalhar em conjunto. Se a estrutura fragmentária lhe pareceu certa para A Visita do Brutamontes, não se ajustava a este livro. “Nesta história, os extremos acontecem na própria acção. A sobrevivência no mar ou os assassínios. Não encontrei um modo de apresentar esse material usando a ironia, a fragmentação. Não servia para contar histórias extremamente dramáticas como esta.”
É mais uma vez intuição; saber por exemplo quando uma personagem deve dar determinado movimento. Demorou até que Anna fosse autorizada a mergulhar, e demorou ainda mais saber se ela iria mesmo ter essa autorização. Até que mergulhou, carregando um fato de 90 quilos que Egan fez questão de também vestir. Sentir o peso. E só depois escreveu uma das cenas mais reveladoras da essência de Anna. O primeiro mergulho. “Sentiu uma torrente de bem-estar cuja fonte não foi de imediato evidente. E então apercebeu-se: a dor do escafandro tinha-se sumido. (...) Sentiu um puxão solitário no cordão umbilical: Estás bem? Repetiu o puxão para indicar que compreendia e que não havia problemas. Está tudo bem. Deu por si a sorrir. O ar nas narinas sabia-lhe deliciosamente; até o silvo da sua chegada, que o tenente Axel descrevera como ‘um mosquito que não precisariam de regular a válvula de escape, mas Anna não foi capaz de resistir a apertar um nadinha mais o bocal em forma de estrela para que se acumulasse mais ar dentro do escafandro. Começou a subir muito ligeiramente, a lama a agarrar-se às solas dos sapatos enquanto estes se afastavam. Uma explosão de prazer rebentou dentro dela. Parecia estar a voar, parecia magia — parecia estar entro de um sonho. Abriu a válvula de escape e deixou sair o ar em excesso até os pés assentarem de novo no leito da baía.” Anna, como Dexter Styles, o gangster, preferia o perigo ao sofrimento.
O mapa deste território
A baía onde Anna mergulhou é a Wallabout Bay, entre as pontes de Manhattan e de Williamsburg, quase onde o rio East entra no oceano. Os números referem que ali chegaram e dali saíram cerca de cinco mil navios de guerra numa América em transformação. São ali os estaleiros de um porto que perdeu poderio para o porto de Newark. Egan levanta-se. “Durante anos recolhi mapas dos estaleiros. Cobriam toda esta parede e a lareira”, sabia que tudo seria ali, mas o livro começa noutro sítio, em Manhattan Beach.
Também existe. Fica no extremo sudeste de Brooklyn, passando Coney Island. Se tivéssemos de traçar o mapa deste território ficcional ele teria centro nos estaleiros, atravessaria a ponte de Manhattan, subiria a ilha até ao Upper East Side, regressaria aos bairros proletários de Brooklyn, passaria pelos restaurantes italianos e irlandeses de Coney Island e chegaria à sumptuosidade de Manhattan Beach. É aí que Dexter Styles vive com a família. As mansões desses tempos ainda subsistem. A de Mr. Styles ficava na primeira linha, em frente ao mar. E é lá que Egan junta pela primeira vez as três personagens centrais. Essa cena inaugural foi mesmo a primeira que escreveu. Aí, também Anna sente qualquer coisa próxima do que fala Melville. “Anna observou o mar. Havia uma sensação que ela tinha quando se encontrava à beira dele: uma mistura eléctrica de atracção e temor.”
Anna e o seu destino, muito antes de poder saber que seria mergulhadora e o mar a talharia. É ali também, em Manhattan Beach, que essa criança, Anna, entra na aparente normalidade familiar de um gangster. “O gansgter era uma figura muito mais aceite socialmente; naquele tempo era quase um trabalho legítimo”, justifica Egan. “Mas por causa da proibição do álcool. É muito importante entender isso. O álcool foi ilegal neste país de 1919 até 1933. Foram 14 anos! E claro que toda a gente queria continuar a beber, em especial as classes socialmente mais elevadas. O gangster, o crime organizado até um certo grau, tornou-se organizado para continuar este negócio. E havia um sentimento benigno em relação a eles. Eram, basicamente, vendedores de bebidas alcoólicas. Estamos sempre a ouvir falar de patrões do crime e gangsters a conviver com gente respeitável. Está na literatura, no cinema... Os gangsters fizeram muito dinheiro durante a interdição do álcool e depois o Governo tomou o controlo disso e foi o Governo a fazer dinheiro. Eles tiveram de encontrar uma maneira de substituir esse canal de lucro e, nessa altura, a actividade deixou de ser olhada de modo tão benevolente. Entraram nas drogas pesadas, heroína, prostituição, tornaram-se sangrentos, especialmente as máfias de Chicago, com Al Capone. Mataram realmente muita gente. Muitas coisas mudaram ao longo do tempo, mas continuava a existir legitimação suficiente ligada a estas figuras que pude pôr a conviver, e ligadas a outros segmentos da sociedade nova-iorquina. A mulher de Dexter Styles era uma rapariga respeitável. Gosto disso porque gosto muito de justaposições.”
Isso permite-lhe dar um retrato do submundo. Duro, hipócrita, contrastante com quotidianos comezinhos, solitários, onde a discriminação de mulheres e negros era vista como parte da vida. Como era a pobreza dos imigrantes, vítimas e também cúmplices de uma corrupção transversal à sociedade porque era preciso sobreviver. “E a corrupção não está nos olhos de quem a vê?”, indaga uma personagem. E a outra responde que sim. Egan não resiste a fazer a ponte para a actualidade. Para a pouca diferença, por exemplo, entre esse dinheiro novo e o dinheiro velho. “Temos esta tradição de acumular riqueza à custa de outras pessoas. Sejam escravos, sejam imigrantes. A violência que existe na nossa cultura é tão profunda...”
O livro toca a ferida. Vai à tal identidade de que também falava Melville. Ele está sempre presente. Egan chama-lhe uma espécie de espírito-guia, num livro sobre gente a tocar os limites. Todos. Uma personagem do livro lembra: “O Melville foi quem melhor o disse: ‘Nada satisfará os homens a não ser o limite extremíssimo da terra.’” Agora é Egan: “É muito engraçado que Moby Dick comece em Nova Iorque. Melville descreve as pessoas a serem lançadas à água em Nova Iorque, escreve exactamente sobre zona. Não me lembrava; a primeira vez que li Moby Dick nunca tinha vivido em Nova Iorque.”
A identidade
Jennifer Egan nasceu em Chicago em 1952, cresceu na Califórnia, não é uma nova-iorquina como Melville, nascido em Manhattan em 1891. Mas experimentem dizer-lhe que não é nova-iorquina. “Como define um nova-iorquino? Considero-me nova-iorquina. Escolhi a cidade e adoro-a.” Vive lá desde 1987, foi lá que escreveu os cinco romances e dois volumes de contos; que se casou e teve dois filhos. “É muito tempo”, insiste, para depois avançar com uma definição que lhe assenta. “Um nova-iorquino é alguém que se sente confortável em viver neste ambiente extremo. Muita gente não gosta de Nova Iorque. Chegam aqui de muitos sítios, têm a sua experiência e querem voltar para onde vieram. Não é o que sinto. Não foi fácil quando cheguei, porque não conhecia ninguém, não tinha família aqui e não sabia que Nova Iorque poderia ser tão cara. Vivi de maneira muito difícil, não tinha dinheiro, passei por situações complicadas, patrões terríveis, mas valeu sempre a pena. É o meu lugar. Sinto-me em casa aqui. Ah... Nunca tive um carro. Não é coisa que muitos americanos possam dizer, e acho a cidade infinitamente inspiradora. Sou tão estimulada por Nova Iorque! Não escrevo sobre a minha vida, sobre pessoas que conheço. Olho para fora. Gosto de estar perto de muitas pessoas. Adoro o metro, ouvir e olhar para pessoas. Acho os nova-iorquinos muito amáveis. Temos a reputação de malcriados e duros. Não acho justo. Há neles uma amabilidade genuína e olham uns pelos outros. Pode ser um lugar duro para se estar. Mas assenta-me. Sou impaciente, gosto que as coisas andem, gosto de conhecer e de encontrar gente de todo o mundo.”
O tema leva-a outra vez à Nova Iorque actual. “Uma das atitudes mais grotescas que estão a surgir com esta Administração é a mentalidade anti-imigrante. Está para lá de ridícula, porque a própria mulher de Trump é imigrante. Vivendo nesta cidade só nos resta rir com a ideia. A América é um país de imigrantes. É isso que a América é, e é o que traz esta energia. Quem são os americanos? Toda a gente veio de algum outro lugar. Os meus antepassados vieram da Irlanda durante a peste da batata [meados do século XIX], experimentaram um preconceito extremo. Como todos os irlandeses, eram muito discriminados, de forma muito aberta. Havia pessoas muito traumatizadas, com famílias muito numerosas, lideradas por mulheres muito fortes. Os homens quase sempre abandonavam as famílias, ou eram tão alcoólicos que mal funcionavam. Estas descrições casam com as dos pobres urbanos de hoje que identificamos como afro-americanos. Com os irlandeses isto começou tão cedo que eles começaram a ultrapassar alguns dos problemas. Agora também são incrivelmente racistas. O meu avô era terrivelmente racista. Ele era polícia em Chicago, o cliché do irlandês na América.”
Eis como fala uma americana de Nova Iorque, que acrescenta que em Nova Iorque adora a proximidade com a Europa. “Gosto de me sentir ligada às origens deste país, de saber que os edifícios foram construídos no século XIX ou mais cedo — e é preciso definir o que é cedo na América. No Midwest, mesmo nas cidades mais velhas, tudo parece novo. E é rude, parece tudo genérico e produzido em massa. Sinto-me a morrer no estereótipo da paisagem americana, auto-estrada com restaurantes de fast-food; não sabemos onde raio estamos, podemos estar em qualquer lugar. Isso parece-me o fim do mundo. Odeio!”
E então Cuddles mia, como a avisar da hora. Não saiu do mesmo lugar. O topo da poltrona virada para a rua, com umas breves miradas para a sala. “Está sempre ali enquanto escrevo, é a minha observadora”, diz Egan. Talvez Cuddles se devesse chamar Melville. Olha a rua, quem a olha de lá vê-a por detrás da vidraça. Faz parte do conto desta cidade.