Na fachada de velha farmácia nasceu arte urbana mas câmara não aceita

Câmara de S. Brás de Alportel, invocando os regulamentos que reagem as zonas histórias, ameaça mandar destruir criação artística.

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Até que ponto os planos de reabilitação urbana das vilas e cidades permitem a criação artística? A pergunta, ainda sem resposta, alimenta uma polémica que envolve a proprietária da antiga Farmácia Passos, em São Brás de Alportel, e a câmara municipal. Graça Passos trava um braço-de-ferro com o poder autárquico para que haja “um debate de ideias” sobre a forma e o modo de requalificar as zonas histórias, respeitando a memória do lugar. Por isso, em jeito de desafio, convidou Jérémy Pajeanc, que lecciona no Lycée Français International do Porto, a desenvolver uma criação na fachada do emblemático edifício. Quando não existe sensibilidade política para ver as coisas no contexto histórico e cultural, diz, “a resposta encontra-se na arte”. A câmara não gostou e mandou tirar.

O trabalho, com cada letra pintada a pincel, foi realizado no primeiro fim-de-semana de Agosto. Na segunda-feira seguinte, a fiscalização municipal detectou a alteração na fachada da habitação no centro histórico, realizada sem autorização. A dona do imóvel, situado na Rua de Gago Coutinho, assume o confronto: “Fiquei na situação de desobediência civil”, diz. Uma das razões que a fizeram tomar esta iniciativa, admite, foi o armário da EDP que lhe tinham colocado, um mês antes, frente à entrada da janela que foi, outrora, a entrada para a farmácia que pertenceu ao seu avô, Virgílio Passos, sem que lhe tivessem dado conhecimento. “É a prepotência do poder local”, acusa.

A câmara enviou uma carta à munícipe — elemento da Comissão Municipal de Preservação do Centro Histórico —, dando-lhe conta que a obra que realizou violava o Plano de Pormenor de Reabilitação do Núcleo Histórico, bem como o Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação e ainda o Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (RJUE). Note-se que as obras de requalificação da segunda fase desta rua são inauguradas hoje.

O município concedeu-lhe dez dias para explicar por escrito a intervenção ali realizada, deixando uma ameaça: “É intenção desta câmara obrigar à reposição da legalidade”.

A explicação foi dada, colocando enfâse no currículo do autor, “único pela simplicidade, sensibilidade política e generosidade”, bem como na escolha dos materiais: tinta de cal e pigmentos naturais — negro-óxido de ferro, azul-ultramarino e verde-menta-de-espinela, na pintura da fachada. “Os homens erram, os grandes homens reparam os erros”, é a frase, em destaque (adaptação de um escrito de Voltaire) que remata o texto que está escrito na platibanda.

“Viola a lei”

O presidente da câmara, Vítor Guerreiro, interpelado pelo PÚBLICO, informou que o assunto foi remetido para “análise no serviço de obras”, não existindo ainda parecer técnico. Todavia, o autarca socialista adiantou: “Se a intervenção foi provisória, nada tenho contra e até apoio a ideia artística”. Caso venha a assumir um carácter definitivo, não tem dúvidas: “Viola a lei e os regulamentos são para cumprir”.

Do outro lado da rua, há casas com azulejos de várias cores, portas e janelas de alumínio cinzento-claro (um desses edifícios particulares está alugado para serviços camarários). “Estamos a procurar sensibilizar os proprietários a aderirem à requalificação, reabilitando as habitações”, diz o autarca, destacando que a revitalização da zona histórica está a trazer as pessoas de regresso a este espaço em que uma parte significativa das casas se encontrava devoluta.

Por seu lado, Graça Passos questiona: “Porque não foi apresentado o projecto na Comissão Municipal de Preservação do Centro Histórico?”. O autarca responde que houve “comunicação a toda a população”, tendo existido uma sessão pública na câmara municipal com a arquitecta Amélia Santos, autora do projecto, para prestar todos os esclarecimentos relacionadas com a obra.

A obra de reabilitação que vai ser inaugurada hoje custou cerca de 150 mil euros e teve como objectivo conferir à Rua de Gago Coutinho uma nova vivência. O emaranhado dos fios eléctricos desapareceu da fachada dos prédios, o estacionamento automóvel foi reordenado e o espaço urbano ganhou novo mobiliário.

Mas Graça Passos queixa-se de que vive “o sofrimento diário de assistir à desfiguração do espírito do lugar”. À semelhança do que aconteceu noutras localidades, a introdução de equipamentos e infra-estruturas modernas, nalguns casos, choca com elementos de identificação e a memória do sítio. O espírito do lugar é a “camada invisível mas poderosa que nos liga a todos” está escrito na platibanda da antiga farmácia de Virgílio Passos.

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