Reitor de Lisboa faz discurso demolidor sobre a política para o ensino superior

Na abertura do ano académico e antes da oração de sapiência de Marcelo Rebelo de Sousa, o reitor da Universidade de Lisboa lamenta encerramento de vagas para alunos, falta de financiamento e ataques à autonomia universitária.

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António Cruz Serra e Marcelo Rebelo de Sousa, antes da última aula do Presidente da República Daniel Rocha

Não ficou pedra sobre pedra na estratégia política do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no que diz respeito a este último sector. O reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, aproveitou a audiência de Estado desta sessão especial de abertura do ano académico que é também a última aula do Presidente da República para voltar a criticar duramente aspectos cruciais daquela política, em particular o encerramento de vagas para alunos, a falta de financiamento e outras medidas que considera um ataque à autonomia universitária.

“O total de 7214 novos estudantes que este ano recebemos na Universidade de Lisboa, após a primeira fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior é, lamentavelmente, menor do que em anos anteriores”, começou por dizer, referindo-se à decisão do Governo de encerrar vagas em Lisboa e no Porto para valorizar as instituições do interior. “Não podemos compreender que o nosso Ministério force as melhores universidades a fechar as suas portas a excelentes estudantes, quando tinham todas as condições para os receber”, afirmou.

Para ilustrar a situação, Cruz Serra referiu dois números: “As instituições de Lisboa e Porto perderam este ano, por imposição governamental, 1066 vagas” enquanto as 31 instituições do Algarve, ilhas, interior, de Coimbra, Aveiro e Minho receberam apenas mais 98 alunos do que no ano anterior.

“Nunca será com tais medidas, que impedem os jovens de estudar nas universidades mais prestigiadas do país e melhor qualificadas nos rankings internacionais, que promoveremos o desenvolvimento do interior do país”, afirmou. “O que Portugal precisa é de assegurar um aumento da base de recrutamento do seu ensino superior, no país e no estrangeiro”, defendeu, alertando para o “inverno demográfico” dos próximos anos.

Mas não era a única crítica. O reitor criticou as “muitas medidas legislativas recentemente tomadas em total desconsideração pela autonomia universitária”, começando por aquela de que resulta “a contratação sem concurso do seu pessoal docente e investigador”, o que, aliás, considera que faz mesmo “tábua rasa do texto constitucional”. “Por imposição legal, as universidades têm agora de abrir concursos para pessoas determinadas adaptando no edital a descrição do lugar posto a concurso ao perfil do candidato pré-escolhido”, acusou.

“Não imagino medida que mais violentamente fira o legado de José Mariano Gago que, contra a endogamia, soube construir um sistema científico baseado no recrutamento por mérito, através de concursos internacionais”, atirou.

Campanha político-sindical

Cruz Serra ainda não tinha terminado. Falou ainda de uma “inexplicável campanha político-sindical de ataque aos reitores e aos dirigentes das escolas com o objectivo de os fazer recuar na defesa da autonomia, da qualidade de recrutamento do corpo docente e de investigação, bem como da sustentabilidade financeira e da autonomia da universidade pública”. Uma campanha que, diz, “acena com a ilusão de recursos financeiros que nunca existiram”.

Numa altura em que se prepara o Orçamento do Estado para 2019, o reitor acusa a ausência de recursos para o financiamento dos contratos precários: “Não há um cêntimo nas dotações orçamentais propostas para a regularização dos vínculos no âmbito da PREVPAP” e a norma transitória para os bolseiros. E só na Universidade de Lisboa os encargos daí resultantes representam cinco mihões de euros, afirmou.

“O não financiamento destes contratos constitui uma violação do acordo assinado entre o Governo e as universidades públicas, como igualmente o constitui o congelamento do valor das propinas, pela Assembleia da República, sem o consequente reforço orçamental para as universidades”, sublinhou. Para fechar o capítulo das críticas, considerou: “Não é aceitável que a construção do Orçamento do Estado não assente nos compromissos já firmados e na despesa que deles decorre. O descontrole do défice tem muitas vezes origem na suborçamentação da despesa ou na sobreorçamentação da receita”. Mas acabou por manifestar esperança na apreciação do ministro das Finanças.

Marcelo Rebelo de Sousa ouviu atentamente, alternando meios sorrisos com um ar preocupado. A audiência da Aula Magna, repleta de alunos, professores e investigadores, irrompeu em aplausos muitas vezes. Na fila da frente, não estava o ministro do Ensino Superior. E os governantes presentes – Educação, Administração Interna e Mar – têm outras frentes com que se preocupar.

No final, o Presidente da República disse aos jornalistas ter tomado “devida nota” das preocupações do reitor, mas desdramatizou: “Este é o momento em que habitualmente os reitores apresentam o caderno reivindicativo. É o ponto de vista da Universidade de Lisboa e o reitor aproveitou para dizer as suas preocupações na abertura do ano lectivo, o que é natural”.

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