Outra chave
Três textos inéditos de Bolaño que mostram outros lados das muitas personagens conhecidas que habitam os seus livros.
O chileno Roberto Bolaño (1953-2003) nunca abandonava, ou sequer esquecia, os seus textos. Uma das provas desse facto são as três histórias (inéditas) reunidas agora em Sepulcros de Cowboys, que há pouco tempo foram resgatadas, pela viúva do escritor, dos seus ficheiros informáticos: a primeira delas, Pátria, é datada de algures entre 1992 e 1995; segue-se Sepulcro de Cowboys, entre 1995 e 1998; e a última, Comédia do Horror de França, datada de pouco antes da sua morte, em 2003. O que de imediato ressalta aos leitores destes três textos é o facto de eles nos remeterem para o conjunto da obra bolañiana como se fossem “peças de um puzzle”. Como se esta obra estivesse num movimento contínuo, tentando equilibrar-se, e interessando ao autor “mais o percurso [das personagens e das histórias] do que o seu final”, como nota Juan Ródenas no esclarecedor prólogo ao livro. É o tenso equilíbrio entre energia e melancolia o que talvez seja mais característico no tom narrativo destas histórias que, de alguma forma, pairaram algures perdidas no tempo, num tempo chileno de Allende, num tempo mexicano de exilados.
Assim, e com estas narrativas, é como se o escritor chileno nos quisesse dar mais uma chave para abrir outro dos seus alçapões: o do nascimento de algumas das suas personagens (alguns textos poderão ter sido escritos ao mesmo tempo que Bolaño trabalhava noutros livros). Vemos aparecer Arturo Belano, que se tornará no alter-ego do autor, e que aparecerá em Os Detectives Selvagens (Quetzal, 2017); e não faltam referências a muitos outros livros: o avião de O Terceiro Reich, o Messerschmitt, “a joiazinha da Luftwaffe”, e o seu piloto Hans Marseille, ainda o tenente Hoffman que surge em Estrela Distante (bem como uma epígrafe em que se diz que um avião escrevia mensagens no céu); ou ainda a personagem “o verme”, que surgirá diferente num conto de Chamadas Telefónicas. Depois há personagens mais ambíguas, como o poeta Cherniakovski ou a doutora Amalfitano, que remetem igualmente para memórias de outros livros, entre os quais A Literatura Nazi nas Américas.
Mas Sepulcros de Cowboys não se fica por desvendar alguns lados mais desconhecidos das personagens de outros livros. Há nele também o recorrer continuado a um espaço geográfico narrativo conhecido, que alterna entre o Chile e o México, merecendo uma atenção especial, a província de Sonora, e o lugar de Santa Teresa, que Bolaño imortalizou em 2666. Esta geografia, por vezes ambígua, remete sempre para uma presença biográfica. É assim que logo no começo da segunda história (ou na segunda secção do livro, como se queira ler) Arturo Belano se apresenta dizendo que “não sabia se era chileno ou mexicano e também não me importava muito com isso”. A biografia literária (e não apenas a autobiografia) é um dos recursos estilísticos e narrativos a que Bolaño recorre frequentemente; e em Sepulcros de Cowboys, são vários os textos em que os protagonistas são poetas.
Neste livro, as histórias, as suas tramas, não se desviam daquilo que é habitual em Bolaño: o horror da violência (de onde não está ausente uma certa melancolia), o exílio por motivos políticos, os falhados, e os anti-heróis. Para ele o texto literário é uma fantasmagoria condenada aos pesadelos e às visões; nele, o passado, que é trazido pelos ventos negros da miséria para o campo ritual do horror, é a memória em permanente construção (ou melhor, é antes uma espécie de construção do esquecimento), é o imaginário colectivo esvaziado e em contínua reformulação num espaço estilhaçado pelas memórias individuais, sem mitologias nem heróis, em que o épico se transformou em elegia. Para Bolaño a literatura era o duro ofício de dar voz aos fantasmas que habitam a noite escura da nossa alma, esses lugares onde já mal se ouvem canções e onde cabem a loucura e o horror. Essa espécie de atracção pelo vazio do abismo, pela vertigem e pela queda, está presente em toda a sua obra (este livro não foge à regra). O que sempre o importou não foi o sangue nem as balas, foram as vidas banais das personagens, com as suas grandes derrotas, carregando às costas os magros despojos dos seus naufrágios, foram as vidas vítimas das desgraças, vidas vagabundas e marginais, foram os orgulhosos anti-heróis e as suas missões impossíveis, e foi sobretudo essa incessante busca pela sobrevivência a que todas as suas personagens estão irremediavelmente condenadas.