Dos romanos à selfie, tudo sobre o retrato em Portugal
Últimos dias para ver a magnífica exposição sobre o retrato em Portugal no Museu de Arte Antiga.
A partir do livro do pintor maneirista Francisco de Holanda que dá o nome à exposição — Do tirar polo natural, ou seja, no português de hoje, “sobre o desenho de modelo” — o Museu Nacional de Arte Antiga apresenta desde final de Junho uma magnífica exposição a que dá por subtítulo um “inquérito ao retrato português”. Tema vastíssimo; de facto, há na arte portuguesa um momento fundador, ou tido por fundador, que se insere no género do retrato. Falamos nos Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, que se podem visitar neste mesmo museu, numa das salas de exposição permanente, e que fizeram correr rios de tinta a propósito da sua justa identificação e interpretação. Quem representam exactamente, porque foram pintados assim, como seria a disposição exacta do retábulo que integrariam na Sé de Lisboa? Mais do que responder a estas questões, importa perceber que os três núcleos em que a exposição se divide — “do afectivo”, “da identidade”, “do poder” — atravessam, em filigrana, não apenas os retratos dos Painéis, mas todas as interpretações que eles têm suscitado até aos dias de hoje.
Há apenas uma obra na exposição que comenta estes painéis: trata-se de uma colagem que é reproduzida em impressão despretensiosa, feita pelos membros do grupo KWY para assinalar o centenário do Infante D. Henrique (uma das poucas figuras que têm identidade certa na obra de Nuno Gonçalves). Nessa peça, Lourdes Castro, René Bertholo e os amigos substituíram os seus próprios retratos pelos das personagens da pintura. Esta obra, que está numa das salas que tratam da questão da identidade, acaba por funcionar como um memento da colecção permanente do museu. E por condensar a memória de tantos outros retratos, portugueses ou não, que transportamos connosco à medida que visitamos a exposição.
Regressemos a ela. Trata-se de uma exposição de autor, tanto ou mais do que de artistas. A assinatura dos três curadores deixa-se perceber em todas as salas da exposição. Como noutras que já visitámos, assinadas por Paulo Pires do Vale (recordamos, por exemplo, Pliure, em Paris em 2015, e os Muros de Abrigo, a grande antológica de Ana Vieira na Gulbenkian, em 2011, bem como a antológica dos livros de artista de Lourdes Castro, em 2015), notamos em toda a exposição o brilhantismo de saber colocar em diálogo inteligente arte e não arte, obras contemporâneas e outras que não o são, e sobretudo de conseguir relacionar o pensamento e a arte, e isto não apenas numa ilustração literal dos preceitos (que hoje qualificaríamos de académicos) sobre o melhor modo de retratar bocas, narizes, idades e outros elementos do retrato que a montagem nos vai deixando deliciosamente descobrir em vinis colados nas paredes das salas da exposição. Do mesmo modo, Filipa Oliveira, que deixou há poucos meses a programação da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, trouxe para esta exposição a atenção que sempre dedicou à contemporaneidade e mesmo à criação artística mais vibrante, palpitante, actual. E finalmente Anísio Franco, historiador de saber imenso, que vamos adivinhando na capacidade que a exposição possui de nos surpreender com obras inesperadas vindas um pouco de todo o país, apenas possíveis de ver através de uma erudição que vai acompanhando a intuição e a capacidade de ousar.
O modo como a exposição começa é, em si, uma assinatura, uma espécie de auto-retrato dos curadores. Encontramos no átrio um vídeo de Helena Almeida aliado a uma peça da dupla Musa paradisiaca que apoia uma performance que se realiza aos fins de semana. Segue-se, numa pequena antecâmara, aquilo que poderíamos considerar o manifesto da exposição: duas pinturas cujo grande mérito consiste na alusão às lendas fundadoras do retrato e do desenho, aliadas a uma magnífica selecção de peças de Lourdes Castro e de Ana Vieira, qualquer uma delas parecendo uma transcrição contemporânea do mito antigo. Depois, esta miscelânea mantém-se e surpreende-nos sempre em todas as salas. Não há divisão nenhuma por períodos históricos, por técnicas, sequer por qualidade. Uma caderneta de cromos da bola pode conviver com os retratos de Carlos Relvas, como um conjunto de máscaras mortuárias em gesso, vindas de um museu de ciência, pode estar muito perto das máscaras de Jorge Molder. De certo modo, este é um modo de considerar a arte que parte de um conceito enciclopédico, warburgiano, onde o critério escolhido permite as mais surpreendentes associações. Por isso, os vários núcleos da exposição acabam por se imbricar uns nos outros. Nos retratos racistas de Eduardo Malta — dois perfis femininos loiros e supostamente arianos — interrogamo-nos sobre se estamos a tratar de identidade, de afecto ou de poder. Talvez, como em tantas instâncias da exposição, destes três conceitos simultaneamente. Talvez também, quem sabe, o retrato seja sempre um auto-retrato.
Esta exposição está completa, mesmo que nela falte sempre alguma coisa. É que esta selecção, feita por estes três curadores, é suficiente para magistralmente ilustrar o conceito que escolheram. Demonstram-nos permanentemente que, como dizia Walter Benjamin a propósito da fotografia, a aura da obra de arte permanece no rosto do retrato. Abrem portas, linhas de pensamento, caminhos para outras visitas, como dizíamos no começo deste texto. Sairemos daqui para o Museu do Caramulo, por exemplo, e veremos o retrato de Salazar pintado pelo mesmo Malta possivelmente com outros olhos. Saberemos também que os velhos álbuns de família que se guardam em todas as casas (e que Vasco Araújo trabalha aqui tão bem) são também, como diz Paulo Pires do Vale, um desafio à inevitabilidade da morte. E que uma selfie (há um sítio para tirar selfies à entrada do museu, por sinal) é sempre a confirmação de uma presença, de uma pertença a uma comunidade.