O retrato dos retratos em Portugal
Como é que os portugueses se representam a si próprios? O Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, junta 200 obras - muitas delas feitas por artista vivos, porque sem a contemporaneidade não é possível fazer o retrato dos retratos em Portugal. No país que produziu o primeiro tratado do mundo ocidental dedicado ao retrato, há perguntas que tardaram a ser feitas pelos artistas nacionais.
O desenho começa pela sombra, o retrato começa pela sombra. A história do retrato em Portugal é também uma história de sombras com algumas luzes, como defende um dos comissários da nova exposição do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Por isso, para contar este percurso de sete séculos - nem sempre brilhante, como parecia prometer a obra fundadora da arte nacional, os Painéis de São Vicente (c. 1470) - a exposição Do Tirar Pelo Natural - Inquérito ao Retrato Português, que abre ao público esta sexta-feira, precisa de recuar até à Antiguidade Clássica, com Plínio, o Velho, deter-se no Renascimento português, com Francisco de Holanda, e passar ainda por duas artistas contemporâneas, duas mulheres, com Lourdes de Castro e Ana Vieira. São estes quatro nomes que precisamos de reter na primeira sala, porque nesta exposição a cronologia não é o que mais importa e os tempos estão misturados.
Comecemos então pelo que nos diz o artista e humanista do século XVI português, de que agora se comemora o aniversário dos 500 anos do nascimento, pois é através do seu tratado Do Tirar Pelo Natural, escrito em 1549, que se conta o mito propagado por Plínio de que a pintura terá nascido a partir do desenho da sombra de um homem que partia de viagem. Holanda conta-nos que Cora, a filha de um oleiro, desenhou na parede o contorno da sombra da cabeça do amado, antecipando as saudades: “todos concordarão que [a pintura] foi achada da sombra de um homem rodeada com um risco”. Holanda acrescenta, como explica o comissário Anísio Franco, que o próprio artista terá descoberto em criança, de forma intuitiva, ao ver a sombra da sua mão chapada na parede, que a pintura nascera dessa forma de reproduzir o real.
O autor clássico volta a ser citado por Francisco de Holanda para falar de Apeles, o maior dos pintores, retratista de Alexandre, o Grande. Encarregado de pintar Campaspe, uma das preferidas do imperador, apaixonou-se durante a tarefa. “Holanda usa as histórias de Plínio para mostrar a importância da pintura e como o rei tinha muita consideração pelo seu pintor. Alexandre percebeu que Apeles conhecia melhor Campaspe e deu-a a Apeles. O criador apaixonou-se pela sua criação”, explica Paulo Pires do Vale, que juntamente com Filipa Oliveira completa o trio de curadores desta exposição que junta 180 obras no catálogo.
O primeiro núcleo, Do Afectivo: entre presença e ausência, conta então a história do início do retrato, ilustrando essa origem através das pinturas a Invenção da Arte do Desenho, em que se vê Cora a desenhar a cabeça do amado, e Apeles e Campaspe, onde encontramos um retrato dentro da pintura. “O retrato é a presença de uma ausência. O ausente torna-se presente através do retrato, mas essa ausência também é sublinhada por essa presença. O retrato é por isso um paradoxo”, comenta Paulo Pires do Vale, que acaba de ser requisitado pela equipa de produção do museu para acompanhar a montagem de uma obra de Lourdes de Castro, Sombra Projectada da Minha Mãe (1964), uma das várias sombras da artista que se mostram no Museu de Arte Antiga.
“Lourdes Castro é a artista da sombra. Com este retrato da mãe, que é uma preciosidade e veio da casa dela do Funchal, é a primeira vez que faz uma sombra usando o plexiglas. Estas obras ajudam a compreender a relação entre a sombra e os afectos, que é o primeiro dos três núcleos da exposição, porque a Lourdes só fez sombras de pessoas que conhecia bem. Uma das necessidades que o retrato vem suprimir é ter próximo as pessoas que nos são queridas. Os álbuns de fotografia de família são isso”, explica Paulo Pires do Vale, no meio da conversa com o técnico do museu sobre a distância a que a prateleira deve ficar da parede para que a sombra da mãe possa ficar na melhor posição.
Ana Vieira, com a escultura Sem Título, Mulher Sentada (1968), está aqui para trazer a sombra para o meio do espaço, uma vez que o amado de Cora, aquele que Plínio diz que é o primeiro retratado, acaba por ser eternizado numa peça de barro, feita pelo oleiro Butades. Não vemos só com os olhos, continua Paulo Pires do Vale, mas com o corpo todo.
Anísio Franco, conservador do MNAA, explica que esta exposição começa com uma proposta que lhe foi feira pela direcção do museu, que conhece a sua paixão pelo retrato, quer porque, de forma mais literal, é um coleccionador do género (António Filipe Pimentel, o director do MNAA, chama-lhe um béguin), quer porque desde 1992, quando fez uma exposição no Mosteiro dos Jerónimos, intitulada Quatro Séculos de Pintura, tem trabalhado temas como as séries de retratos encomendadas pela família real. “Não há aqui uma única obra minha, claro, e não quero que dêem muita importância a isso. Principalmente não quero que isso se torne a forma de falar desta exposição, que contamine tudo o resto e apague o trabalho que aqui está.”
O que Anísio Franco percebeu é que o manancial de retratos era de tal forma gigantesco que a exposição não podia ser feita de uma só vez. “Tomámos logo a decisão de dividir em duas partes: primeiro fazíamos o retrato de personagens portuguesas pintadas por portugueses; depois o retrato de portugueses pintados por estrangeiros.” Estamos a ver agora a primeira parte, a segunda chegará para o ano. Mas se esta divisão não é natural, porque a realização de retratos portugueses por artistas estrangeiros serviu muitas vezes para actualizar modelos estéticos, trouxe várias “perplexidades”, escreve Anísio Franco no catálogo, no texto Sombras e Alguma Luz: panorama do retrato português. A divisão mostrou também imediatamente, quando se separaram os artistas entre as duas exposições, como se tornava operativa para fazer uma reflexão sobre a retratística em Portugal.” Ou seja, o inquérito ao retrato português começava com duas perguntas: Como é que se representava? Quem é que havia em Portugal capaz de fazer retratos?
“No século XV, quando a pintura que chegou até nós começa em Portugal, com os Primitivos Portugueses, temos esse fantástico retrato colectivo com que são os Painéis de São Vicente. Logo depois, no século XVI, temos o primeiro tratado do mundo ocidental dedicado ao retrato produzido por um português, o Tirar pelo Natural, de Francisco de Holanda. São dois paradigmas muito fortes, o retrato com 58 personagens de Nuno Gonçalves e o tratado teórico sobre o retrato, que pressupunham uma produção a partir daí excepcional pelo seu pioneirismo.” É, aliás, o escritor humanista que nos dá as primeiras notícias, e os maiores elogios, de Nuno Gonçalves, no tratado Da Pintura Antiga. Mas o que se verifica, continua o comissário, é que não foi o sucesso extraordinário que se poderia esperar. “De cada vez que as nossas elites necessitaram de fazer esse reconhecimento através do retrato não encontravam paralelo na produção nacional ou alguém capaz de o fazer. Mandava-se vir alguém de fora.” O primeiro exemplo é dado logo no século XVI, com as filhas de D. Manuel I, quando vêm para cá trabalhar pintores como Alonso Sánchez Coello. E depois da luz trazida pelos Painéis, como os seus retratos individualizados e humanizados, só voltamos a encontrar “aquilo que parecem ser personagens concretas com características personalizadas”, continua Anísio Franco no mesmo texto, quase cem anos depois. É o que vemos nos retratos de D. João III e de D. Catarina de Áustria, pintados por Lourenço de Salzedo (e não por Cristóvão Lopes) ao lado de São João Baptista e de Santa Catarina, em meados do século XVI, numa tradição medievalizante que não se podem considerar verdadeiramente “tirados do natural”. É preciso esperar pelo Renascimento para se ver novamente retratos individualizados, como o busto de Brás Albuquerque ou o medalhão com o retrato de Diogo de Paiva Andrade. Estas obras estão no segundo núcleo da exposição, Da Identidade: entre verdade e ficção.
Essa divisão entre duas exposições, entre autores portugueses e estrangeiros, permitiu transformar em inquérito uma reflexão já iniciada pelo historiador de arte José-Augusto França – qual é o sentido do retrato português? –, outro ausente-presente desta exposição, o segundo homenageado além de Francisco de Holanda. “O único grande trabalho que temos sobre o retrato em Portugal é feito pelo França, com uma exposição que ele propõe para o museu em 1967 e que nunca chegou a ser feita por razões políticas. Ele era persona non grata do regime de Salazar. Esta exposição é uma continuidade desse projecto que não foi feito, mas infelizmente já não conseguimos contar com a sua participação activa. O França responde à sua pergunta, numa revisitação do tema em 1981, dizendo que há um hiato gigantesco de produção qualificada e que depois do pressuposto inicial de Nuno Gonçalves só é retomada com Domingos Sequeira e Columbano Bordalo Pinheiro.”
Com este pressuposto historiográfico, Anísio Franco propôs fazer uma exposição que ultrapassasse as barreiras cronológicas da colecção do museu, entre os Primitivos Portugueses, ou seja, Nuno Gonçalves, e o início da modernidade, com Domingos Sequeira. “Propus alargar o panorama da produção até aos nossos dias e cruzar o retrato português não de forma cronológica e diacrónica, como se pressupunha porque estamos no MNAA, com uma sucessão de questões. Queria interrogar o próprio retrato em Portugal e por isso juntámos uma equipa de comissariado capaz de trabalhar as questões do retrato antigo e contemporâneo.” E por que razão o retrato antigo ajuda a perceber o contemporâneo? Porque é que as famílias, incluindo as dos reis, encomendam retratos a um só pintor nos séculos XVI, XVII e XVIII, tentando refazer o passado? Porque é que os filmes E agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto, ou A Mão, de Ângelo de Sousa, ajudam a perceber Francisco de Holanda e vice-versa? Como é que o auto-retrato de Susana Mendes Silva contamina o de Aurélia de Sousa? Porque é que Aurélia de Sousa se trasvestiu de Santo António? “Trata-se de trazer perguntas que estão ausentes. Há perguntas que não conseguimos abordar com a produção portuguesa antiga.”
Dois desses exemplos encontrámos logo na primeira sala com as histórias contadas por Plínio e retomadas por Francisco de Holanda. Na verdade, os únicos dois estrangeiros desta exposição com lugar de destaque são aqueles que passaram para estes mitos para a pintura, sendo sintomático que assim seja, notam Anísio Franco e Paulo Pires do Vale, e que não haja nas pinacotecas nacionais telas que reproduzam através de mãos portuguesas os mitos dedicados à origem da pintura e do retrato. Uma das obras, aliás, pintada no século XVIII por Joseph Benôit Suvée, veio de Bruges, do Groeningmuseum.
Daqui já vemos o famoso retrato de Carlota Joaquina (c. 1806), de autor desconhecido, com o medalhão com a miniatura de D. João VI ao peito, introduzindo-nos já nas questões da meta-pintura, que veio do Palácio da Ajuda, assim como o próprio medalhão, exibido mesmo ao lado à altura do peito da rainha, que pertence ao MNAA e é da autoria de Domenico Pellegrini (voltará a ser mostrado na exposição do próximo ano). Entramos no jogo da meta-pintura, da pintura dentro da pintura, mas estamos já no século XIX, bem longe das propostas pioneiras de Diego Velázquez, com as Meninas, que é uma pintura sobre a pintura logo no século XVII, para falar só do que se faz em Espanha, aqui ao lado.
É Sequeira quem traz em força as questões da meta-pintura para dentro da exposição, com o retrato da Condessa de Linhares Pintando seu Marido, o Primeiro Conde de Linhares e o Retrato da Família do Primeiro Visconde de Santarém. No primeiro há um triângulo de olhares, porque ela é uma discípula do próprio artista e olha para ele através dos nossos olhos, explicam os comissários; no segundo, além de uma pintura dentro da pintura, há também uma escultura dentro da pintura, que representa D. João VI, o rei ausente no Brasil, o primeiro monarca a ser sistematicamente representado.
Do Museu do Chiado vieram oito obras, a chegar num dos dias em que assistimos à montagem, feitas por Helena Almeida, Mário Botas, Lourdes Castro, António Soares, Sousa Lopes, Francisco Franco, Columbano, Miguel Lupi. Há cinco empréstimos internacionais, do Museu do Prado ao Groeningmuseum, e 70 de entidades nacionais, de museus como o Soares dos Reis ou Serralves ou várias colecções particulares.
À medida que vamos descobrindo retratos, como um de Amadeo de Souza-Cardoso, Barba à guise - Cabeça (c. 1914-15), ou o de Soror Maria Helena de São Bernardo (c. 1802), de Frei Inácio da Silva Coelho Valente, a exposição introduz frases nas paredes retiradas do tratado de Francisco de Holanda, de que há uma cópia de 1825 da Academia de Ciências de Lisboa. Tal como as próprias pinturas fazem adivinhar, estas serão dedicadas ao nariz, mas logo a seguir vem outra frase dedicada à boca: “As bocas são muito diferentes e na pintura são-no mais. [As bocas] não se querem vermelhas sem nenhum maneira, mas de uma cor de rosa música. [As bocas] são muito más de fazer fantasia.”
Como explica Sylvie Deswarte-Rosa, que escreve no catálogo sobre o tratado e o humanista, Francisco de Holanda dá conselhos práticos sobre a arte do retrato: “Começa por dissertar no seu tratado sobre as boas condições para fazer um retrato, a boa iluminação, a necessidade de tranquilidade e de intimidade com o modelo.” E, como já vimos, consagra parte desta conversa em forma de diálogo a algumas partes do rosto – o nariz e a boca, mas também os olhos e as orelhas –, bem como ao corpo inteiro e às vestimentas. Há ainda que dar um último retoque ao retrato dos olhos, um “ponto de limpidíssimo branco”, para os realçar e para que pareçam vivos.
Os corpos excluídos
Nesta segunda visita que fazemos à montagem, já encontramos Filipa Oliveira, recém-chegada de Nova Iorque. Estamos no último núcleo da exposição, dedicado ao Poder, onde estão os mais poderosos, como D. João VI, mas também os corpos ausentes, como os negros ou os presos políticos. Há também os retratos caídos em desgraça, como os de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano, mostrados pelas fotografias de Eduardo Gageiro e de Alfredo Cunha tiradas no 25 de Abril. “Um retrato é sempre duas coisas: subjectivo e incompleto. Defendemos muito isso na exposição e nesse sentido a exposição também é sempre incompleta. Ela está sempre condenada ao erro, porque é impossível pensar em todos os retratos e pensar nela como uma coisa fechada. Na verdade, esta exposição é sobre a impossibilidade de se fazer um retrato sobre o retrato do retrato em Portugal.”
Com Paulo Pires do Vale, Filipa Oliveira está em frente a um filme Super 8 de Fernando Calhau, Destruição (1975), para decidirem a cor do fundo sobre o qual deve ser projectado, uma vez que metade dos três minutos da obra é toda negra. “O fim é a destruição absoluta da imagem. O Calhau é o herói do nada. Este filme, que vai sendo pintado de negro, é sobre a impossibilidade de que a Filipa falava. O retrato é qualquer coisa que está sempre a fazer-se e a refazer-se”, acrescenta Paulo Pires do Vale.
Uma das obras mais curiosas que encontramos é Mascarada Nupcial, pintada por José Conrado Rosa em 1788, que mostra o corpo duplamente excluído da história de arte, negro e anão. Eram as figuras exóticas albergadas na quinta de Belém, vindas de várias partes do império, retratadas por um pintor da corte que pinta este casamento da Preta Rosa, mas que já não tem qualidade suficiente para retratar os infantes que se vão cruzar com Espanha, como D. João VI ou a sua irmã. É um contraponto à Alegoria à Aclamação do Rei D. José I (c. 1750), de Vieira Lusitano. E Filipa Oliveira interroga-o com perguntas de hoje no seu texto para o catálogo – como é que a arte pode ser um lugar de resistência e de afirmação de identidade: “Mais do que um retrato, é uma representação de um grupo de excluídos, de uns outros exóticos e estrangeiros, ridicularizados, vestidos à europeia. Mas estes excluídos, ao invés de frágeis e diminutos, são antes corpos em resistência. Resistência de classificação e de normalização. Ainda hoje.”
A coisa mais óbvia é que os retratos contemporâneos conseguem trazer alguns suportes para a exposição que não estão representados na colecção do MNAA, como a encomenda feita a Vhils, uma parede esculpida em baixo-relevo em que o artista regressa ao seu trabalho no Bairro 6 de Maio para um retrato de três gerações deste bairro de habitações precárias em demolição na Amadora. Igualmente encomenda é a instalação sonora Não (2018), de Luísa Cunha, mostrando como os retratos contemporâneos podem recusar “a rostificação do retrato”, da identidade, nas palavras de Paulo Pires do Vale, tal como as Mãos, de Ângelo de Sousa, dando atenção ao corpo como parte do sujeito. E recuamos vários séculos, novamente até ao tratado de Francisco de Holanda: “cuidando que cada mão é de novo outro rosto por toda a superfície e bom ar dos dedos até ao extremo das unhas: e cuidai que não vai menos nela que em fazer vivos os olhos, os quais muito encomendo com as mãos.”
Um dos mais belos auto-retratos do mundo, assim o classifica Anísio Franco, é o de Aurélia de Sousa que veio do Museu Nacional Soares dos Reis, pintor que juntamente com António Carneiro consegue ultrapassar a pesada herança do naturalismo na pintura portuguesa. Igualmente enigmático é o auto-retrato de Aurélia como Santo António, em que a autora se trasveste. “Há duas formas de pensar quando olhamos para este auto-retrato ”, diz Anísio, retomando a discussão sobre a forma como as questões do presente ajudam a olhar para o passado. “Podemos achar que ela se vestiu de Santo António porque nasceu no dia do santo, mas porque não vermos aqui uma questão LGBT, de identidade de género? Temos aqui uma coisa muito contemporânea que é uma mulher vestida de homem, que parece levantar esse tipo de questões.” Como lembra Paulo Pires do Vale, no seu texto para o catálogo, a identidade do retratado também é criada pela obra. Há quem veja aqui também uma relação como o auto-retrato de António Carneiro enquanto Cristo, explica Anísio, com Aurélia a reagir à censura que esse magnífico Ecce Homo provocou em 1901. A montagem que os comissários propõem coloca este Santo António no meio de um políptico de que fazem parte também os retratos de D. João III e de D. Catarina de Áustria, pintados por Lourenço de Salzedo no século XVI.
Na mesma sala, em 1917, Maria de Lurdes Melo e Castro pinta-se como Nossa Senhora de Lurdes, mas uma Virgem com as unhas dos pés pintadas de vermelho. Mesmo em frente, Albuquerque Mendes aparece crucificado depois de uma operação ao coração, num auto-retrato datado de 1995. Há ainda as várias máscaras de Jorge Molder – qual é o verdadeiro rosto debaixo de todas as máscaras? – para nos interrogarmos, como fez Holanda, sobre se o verdadeiro retrato não pode afinal ser só feito por Deus, numa contaminação neoplatónica de um tratado em que a imitação da natureza devia ter a primazia, como escreve Sylvie Deswarte-Rosa. Entre todos os tratados de pintura dos séculos XV e XVI, incluindo o de Leon Battista Alberti de 1435, até ao de Federico Zuccaro, no início do século XVII, “o tratado de Holanda é o único que permite perceber a antinomia, propriamente filosófica, que está no cerne da criação artística”, escreve Deswarte: “a imitação da natureza pelo artista” versus “a transcrição da ideia eterna, metafísica, transcendental, pelo artista divinamente inspirado”. Qual é o papel da ideia na arte do tirar pelo natural?
Por isso, como diz Paulo Pires do Vale, acabamos a exposição com uma retratos inacabados, entre Malhoas e Columbanos, porque “o retrato tem qualquer coisa de inapreensível e está sempre a ser refeito”.