Para um pós-constantinismo
Francisco recebeu uma ajuda tremenda por aqueles que o querem afastar. Esta tensão poderá levar a uma clarificação de opções, aumentando a sua base de apoio.
Previsivelmente, o pontificado de Francisco seria de mudanças ou, pelo menos, de tensões. Seria, obviamente, um período de acentuar das diferenças dentro da Igreja Católica. Mesmo que Francisco não fizesse reformas significativas (como, de facto, as ainda não fez), a sua postura desafiante e incómoda, robustecida pela forma como ele foi percepcionado, levaria a essa situação: a diversidade nesta instituição duplamente milenar seria levada aos limites da fractura.
A dúvida que todos os olhares atentos teriam era sobre o ponto em que se daria essa tensão limite: no universo da gestão do poder, do clericalismo e da simbólica associada à hierarquia? No campo da relação com os poderes políticos e sociais? No campo da reforma da instituição, especialmente nas questões “fracturantes”? Muito havia por onde criar disfunções internas e por onde lançar dinâmicas de mudança.
Habilmente, Francisco foi fazendo o seu trabalho no campo onde formalmente estava liberto, o da informalidade, que é exactamente onde as acções podem ganhar um cunho que, sem serem suportadas pela letra de uma alteração escrita dos códigos ou catecismos, ultrapassa o tempo presente pela natureza do gesto, pelo simbólico. De facto, Francisco, sem fazer alteração alguma teológica que amarre a Igreja Católica a uma nova postura, conseguiu impor a sua interpretação do que é a Igreja Católica através dos pequenos gestos, da adesão dos fiéis e do reconhecimento generalizado.
De um certo desdém e desvalorização que advinha do facto de acharem que o pontificado seria curto e tudo regressaria ao normal, as hostes mais conservadoras foram percepcionando a mudança à medida que o colégio de cardeais eleitores tem sido moldado, consistório após consistório. Com o último consistório, em que o bispo de Leiria-Fátima passou a cardeal, Francisco deu um passo muito grande para moldar o colégio de cardeais eleitores à sua medida.
A tensão em torno da pedofilia e da possibilidade de Francisco ter ocultado alguma coisa surge, possivelmente, como a última oportunidade para os sectores que lhe são contrários tentarem fazer algo antes do colégio de cardeais estar totalmente perdido e maioritariamente ao gosto deste Papa.
É um grito de sufoco o que ouvimos nos dias que correm por parte dos sectores ultraconservadores da Igreja Católica. E chamo-os de ultraconservadores porque esta tensão já obrigou a uma clarificação que é como que um dano colateral com que os detractores de Francisco não contavam. De facto, este ataque obrigou a uma tomada de posição e, seja por adesão clara e honesta, seja por não quererem ficar no lado errado da História, muitos elementos conservadores já se posicionaram do lado de Francisco – conservadores mas não ultraconservadores.
E este é, neste momento, o maior trunfo de Francisco. O extremar de posições leva a um natural “por mim ou contra mim”. E, nessa situação, Francisco recebeu uma ajuda tremenda por aqueles que o querem afastar: se Francisco é, para muitos católicos, invulgar, liberal e progressista, os seus rivais são muito menos desejáveis. Esta tensão poderá levar a uma clarificação de opções, aumentando a base de apoio de Francisco.
Francisco tem hoje a oportunidade de tomar decisões claras e efectivas. Seja na criação de um tribunal religioso que se dedique às questões de pedofilia, seja na continuidade das suas posturas mais abertas e progressistas.
Este acirrar de posições, obrigando muitos a colocarem-se ao lado do Papa, é a oportunidade que a sociedade esperava para ver uma quase refundação social da Igreja Católica. É, se calhar, a oportunidade inesperada mas conducente que Francisco ainda não tinha tido.
Os sectores ultraconservadores estão em agonia, agarrando-se a tudo o que podem mover contra um Papa que está a pouco tempo de criar modificações substantivas, irrecuperáveis. Agora talvez falte um pouco de estratégia, de acção conducente a medidas claras e eficazes.
Tal como Tolentino Mendonça afirmava aqui em entrevista ao PÚBLICO (1 de Setembro), "O Papa é a referência de uma Igreja que quer purificar-se de crimes". Mas mais, Francisco é a referência de uma outra Igreja, de uma instituição que parece querer libertar-se de mais de milénio e meio de paradigma constantiniano em que o clericalismo e o poder eram as ferramentas de relação com a sociedade.