O “desrespeito pelos proprietários”
O que disse João Almeida que justifica entrar para o clube selecto do “ruído do mundo”, que neste caso só eu devo ter ouvido?
João Almeida não é uma personagem maior da nossa política, que, aliás, não tem quase nenhumas. Mas às vezes são as personagens menores que explicam melhor o que está mal no nosso discurso político, muito abastardado, pobre e completamente dependente de uma agenda mediática igualmente paupérrima. Aliás, nas notícias sobre as suas recentes declarações, é várias vezes chamado “João Oliveira”, o que o deve levar a torcer-se todo. O problema nem é com João Oliveira, corrijo, João Almeida, é em parte com o CDS no seu estilo actual, que maximaliza a dependência da agenda mediática, transformando “casos” em reivindicações políticas ao ritmo da “novidade” jornalística, que é tão grande na frequência como no esquecimento. Pelo caminho, ficam dezenas de exigências, ataques, declarações, protestos, num rastro de palavras que hoje só tem comparação com o do Presidente da República.
O CDS acha que isto é que é “fazer oposição”, em contraste com o PSD que não a faz. E, se calhar, na imediaticidade e rapidez jornalística, que migrou dos media para a política, tirando autonomia ao discurso político, tem razão. E ainda mais quando do lado do PS e do Governo se reage exactamente do mesmo modo, como aconteceu com os comboios. Parece também que o CDS teve uma subida numa sondagem recente, o que tem o efeito perverso de os levar ainda mais a reforçar o estilo. Nessa sondagem, o PS também subiu e o PSD desceu, mas a julgar pela intenção do CDS de ser o mais consequente na oposição, o PS parece ser imune à “oposição” do CDS. Mas, até uns meses antes das eleições, as sondagens são “apareçómetros” e aí o CDS tem enorme vantagem.
O que disse João Almeida que justifica entrar para o clube selecto do “ruído do mundo”, que neste caso só eu devo ter ouvido? Azares. Fez uma conversa com os jornalistas na Assembleia que ilustra quase tudo que está mal na nossa actividade política ao nível verbal e de ideias ou ausência delas. Pronunciava--se sobre a “taxa Robles”, a que chama agora “taxa Robles versão Rio”. Está bem, é como se fosse um título do jornal, e como de costume quer fazer colar a classificação pela repetição. É um mecanismo puramente mediático, mas pouco nos diz sobre a substância da coisa. Aliás, é esse o primeiro problema, a classificação substitui a substância, visto que a classificação circula nos media e a substância não, mas João Almeida é um político moderno. Claro que escapa a estas pessoas que, logo à cabeça, fazer isto encapsula o discurso na escassa minoria dos portugueses que acompanha esta vida política e já está também viciado neste estilo. Aos restantes passa-lhes ao lado.
Ele está a falar essencialmente contra Rio e não contra o PS ou sequer o BE, mas como é habitual nas actuais “fake news” só refere parte da proposta de Rio, a que lhe convém. Aliás, mais importante na economia do discurso do CDS do que a proposta é o escândalo com o facto de Rio ter admitido que a proposta do BE “não era tão disparatada assim”. No dia seguinte, Rio precisou o que queria dizer, de uma forma mais consistente do que é comum na vida política actual, mas durante 24 horas caíram o Carmo e a Trindade que, aliás, estão sempre a cair. Na verdade, 24 horas hoje é um século ao ritmo dos media. Durante 24 horas, os media não falam de outra coisa, em particular se não houver futebol. E, sim, Rio fez mal em exprimir uma opinião genérica e ambígua, no actual terreno minado, mas a irritação dele com a obsessão posicional na nossa política é certa.
João Almeida, muito acompanhado pela fracção organizada anti-Rio no PSD, deu um estatuto de dignidade “ideológica” à sua recusa. Afirmou que quem é de direita não pode levar em conta qualquer posição que venha das “esquerdas”. Aqui está outra característica actual da política portuguesa: é posicional antes de tudo, vem do inimigo, é má, vem do amigo, é boa. E confunde “ideologia” com aquilo a que os marxistas chamavam “posição de classe”, interesses.
Na verdade, o único interlocutor de Almeida são os “proprietários”, expressão que prefere a “senhorios”, porque as palavras fazem parte da guerra. E considera, falsamente — visto que apenas fala da parte da proposta de Rio que faz um agravamento fiscal e não da que diminui a fiscalidade, que “aumenta a carga fiscal, desrespeita os proprietários — sejam grandes ou pequenos — e contribui para o desaceleramento da nossa economia”. Foi, aliás, mais papista que os “proprietários”, bem mais moderados na apreciação da proposta.
A expressão “desrespeita os proprietários” é interessante, como a prevenção de que “sejam grandes ou pequenos”, o que convenhamos faz uma diferença. João Almeida nunca diria, certamente por razões ideológicas, que uma proposta “desrespeitaria os trabalhadores” ou “desrespeitaria os inquilinos”. Por exemplo, nunca diria que a Lei Cristas “desrespeita os inquilinos”, pondo-os na rua em massa. E nunca acrescentaria “sejam ricos ou pobres”.
Porque é que isto é o pão nosso de cada dia da nossa política? Conjuga pretensão “ideológica” que confunde com interesses, falsifica a posição que combate e incorpora a pobreza posicional da política portuguesa. E, acima de tudo, não fala da substância, do conteúdo, do miolo, do que faz tiquetaque como as bombas, da especulação imobiliária, o pequeno problema que mereceu de uma instituição amiga do CDS, o FMI, a muito recente recomendação ao Governo de que lhe devia dar “particular atenção”. Mas está visto que João Almeida deve achar que enunciar sequer que existe especulação imobiliária, como faz o FMI, “desrespeita os proprietários”.