Se as cidades tivessem voz para se queixarem do clima, a capital do Azerbaijão seria uma das últimas a fazê-lo. Ali, as brisas do Cáspio atenuam os rigores estivais e o ar marítimo tempera o frio do Inverno. Todavia, não há estação em que a gente de Baku não suba até às terras altas do Cáucaso, às paragens onde a capital do Azerbaijão encontra mais do que um contraponto. À excepção do litoral norte caspiano, colorido por estâncias balneares em Nabran, na província de Khachmaz, e frequentadas por veraneantes russos (a fronteira fica a escassas dezenas de quilómetros), quase toda a região setentrional do Azerbaijão, do Cáspio às fronteiras com a Arménia e a república do Ngorno-Karabakh, revela um modesto desenvolvimento à vista da espécie de disneyland urbanística representada pela downtown de Baku.
A região é, no entanto, uma das mais carismáticas do país: acidentada e com relevos acima dos 4000 metros (os picos de Shahdagh e de Bazarduz), bastante matizada em termos paisagísticos e, não menos assinalável, cenário de importantíssimos sucessos históricos na atribulada vida da Transcaucásia. É, também por todas essas razões, e obviamente mais do que Baku, o lugar onde o Azerbaijão real, o que cabe no chavão do “país profundo”, melhor se põe ao alcance do viajante.
Neste mapa desenha-se um itinerário pelo centro geográfico do norte do Azerbaijão, à beira da extremidade sul do Grande Cáucaso. Aldeias incrustadas nos flancos das montanhas, testemunhos palacianos de um principado setecentista, um canato herdeiro do restos do Império Mongol de Gengis-Khan, velhos caravanserai dos tempos da Rota da Seda, a que se juntam caminhos que em anos recentes se têm vindo a inscrever nos mapas do turismo cultural e do ecoturismo. A proposta é a de um itinerário geográfico e cultural, iluminado por um punhado de reminiscências históricas que deram forma a esta região da Eurásia e por dois breves insights literários: Hadji Murab, símbolo do independentismo caucasiano e personagem do romance homónimo de Leon Tolstoi, terá encontrado a morte na região de Sheki (uma boa parte da história desenrola-se, justamente, no Cáucaso, no quadro de resistência local face ao império russo) e é nesta cidade, antes conhecida como Nukka, que Brecht situa os principais acontecimentos de O Círculo de Giz Caucasiano.
Khinalik e as promessas-cavalo-de-Tróia do ecoturismo
Se lermos Quba - terra de um muito antigo reino albanês (esta Albânia nada tem a ver com a dos Balcãs) - como um anagrama de Baku, bate a bota com a perdigota. Baku está tão distante quanto Paris ou Londres ou Berlim - e não necessariamente no sentido geográfico. Quba, que fica a umas três ou quatro horas de viagem da capital, é, além de centro administrativo, apenas uma etapa para quem não se encante com esses lugares que os modernos tratados de viagem costumam relegar para terceiro plano porque não há nada para ver nem para fazer, e muito menos abundância de cafés trendy.
A velha Quba é quase uma jóia condenada ao olvido, com as suas ruelas absortas entre arquitectura de timbre turco. Sim, a língua pode ser uma matriz da pátria. Não é sem consequências o facto de as línguas faladas no Azerbaijão terem um reconhecido parentesco com o linguarejar do povo de Ataturk. A língua e a linguagem são também coisa material e prolongam-se em coisas palpáveis como as casas dos falantes.
Quba acaba por ser sobretudo um lugar de passagem para um emergente destino ecoturístico e cultural: Khinaliq. A aldeia mais famosa deste trecho meridional do Cáucaso, eleita oficialmente como reserva de carácter histórico, arquitectónico e etnográfico do Azerbaijão, mede-se através de um feixe de bravas singularidades. Para se lá chegar há que torturar o esqueleto em serpentinas de estrada de montanha. Um pequeno exagero: o acesso a Khinaliq a partir de Quba foi melhorado recentemente e o percurso já não requer um todo-o-terreno. Mas ainda é uma viagem de carrossel.
O povoado é uma curiosa aglomeração de casas coladas umas às outras. Equilibra-se sobre uma crista, a 2500 metros de altitude, como que em guarda contra um invasor: podia ali estar um castelo, uma muralha, um torreão. É um casario de pedra edificado com uma lógica solidária, de complementaridade: a cobertura de uma é o pátio de outra. A inclinação das encostas e o rigor invernal justificam a morfologia da aldeia, onde vivem duas centenas de famílias.
À volta de Khinalik estende-se um cenário acidentado ideal para caminheiros. A paisagem varia a cada cem passos, picos e vales, riachos e ravinas, pastores e rebanhos - a pastorícia e a produção de artefactos necessários à sobrevivência neste trecho das montanhas caucasianas são as principais actividades dos habitantes. Para já. O século XXI e o encurtamento das distâncias atirou Khinaliq para as rotas do turismo de natureza, para o ecoturismo e ao encontro da curiosidade forasteira pelas idiossincrasias culturais de uma (pouca) gente que tem a sua própria língua, o Ketsh. Uma das mais remotas e isoladas povoações do Cáucaso azerbaijão abriu o flanco, oferece homestays que podem ser agendadas a partir de Baku ou de muito mais longe, com alguma reserva da gente mais idosa e entusiasmo dos mais novos pelo turismo.
Para utilizar linguagem contemporânea, em Khinaliq a geografia é “um recurso”. E o devir da abertura a forasteiros curiosos uma fatalidade. E, como em tantos outros lugares, a identidade é uma coisa em trânsito: talvez daqui a uma dezena de anos seja outro o retrato desta Khinaliq. Há intervalos, claro, nesta vertigem: o cosmopolitismo dura até os cenários se voltarem a encher de neve. É tempo, agora, antes que chegue o Inverno e os seus trinta graus negativos, de oferecer aos olhos e aos pés este ainda mais ou menos remoto trecho do Azerbaijão.
Sheki, sedas e sorrisos
A menos que o viajante se faça de (super) toupeira ou esteja preparado para montanhismos radicais através dos altos relevos caucasianos, só há uma forma de transitar para o noroeste do Azerbaijão, onde podemos encontrar alguns dos locais mais significativos da região sob o ponto de vista histórico e cultural. É preciso descer a Baku (ou quase: pelo menos até Shamakhi, outra cidade histórica ligada à Rota da Seda e famosa também pelo vinho que exportava para a Europa) e apanhar o comboio nocturno para Sheki. Diz-se que há um velho caminho de montanha entre Khinaliq e Qabala, mas convém indagar se está transitável.
As carruagens são dos idos soviéticos e mantêm a mesma designação; as platzkart, carruagens-cama em espaço aberto, têm tarifas muito em conta e são minimamente confortáveis. O ar condicionado, assevera o revisor na língua de Lenine (nas antigas repúblicas da URSS o russo continua a ser língua franca), começará a funcionar em pleno logo que o comboio ganhe velocidade.
Por volta das oito da manhã chegamos aos arrabaldes de Sheki; a estação fica a uns 17 quilómetros do centro. Surpresa: a negociação com o taxista foi brincadeira de criança. Sete manats, dois euros e meio para dividir com David, um escocês que anda a dar a volta ao mundo e que acaba de chegar também de Baku. Sete manats é a tarifa normal naquele percurso. Não digam, por favor, que não há lugares no mundo com taxistas honestos.
O alojamento pode esperar: à procura do pequeno-almoço desbravamos caminho através de ruas esventradas e poeirentas - metade do Azerbaijão parece estar em obras. E as ruas e becos de Sheki bem precisam. O emaranhado de ruelas nas traseiras das vias principais (e mesmo estas), onde encontramos muito casario em pedra e madeira a lembrar feição turca, apresenta-se em terra (pouco) batida, povoado de buracos e valas.
Depois do matabicho generoso, ovos, café e halva, o famoso doce autóctone feito com frutos secos e especiarias, seguido de sorrisos e cândidas solicitações de selfies pelo pessoal do restaurante e pedidos de esclarecimento sobre a origem dos viajantes (o costume: “Portugalia? Ronaldo!"), lá partimos para o caravanserai.
A entrada é numa esquina. Atravessamos uma portinhola estreita aberta num grande portão de madeira em forma de arco, mergulhamos na escuridão do átrio e saímos logo para a claridade de um grande pátio um tanto semelhante a um claustro. O caravanserai é um dos dois que sobrevivem em Sheki. Esta imensa pousada construída no século XVIII foi nos tempos da Rota da Seda um dos principais locais de acolhimento dos comerciantes em viagem para a China. É o maior caravanserai de toda a região caucasiana: tem 300 quartos e ocupa uma área de seis mil metros quadrados.
Quem o visita leva câmara fotográfica e curiosidade. E o cansaço do dia para dele se desfazer em sonos de seda. Pode-se lá dormir, como faziam os mercadores de outros tempos e paragens: a arquitectura e construção robusta de estalagem é a característica mais impressiva do edifício, a que foram acrescentados conforto e equipamentos modernos, já que o caravanserai mantém funções semelhantes às que tinha, embora com hóspedes animados por outros interesses. Nas lojas que ocupam a fachada lateral virada para o rio, lá estão, em abundância, os produtos locais, frutos secos, mel, doces, sedas e a habitual quinquilharia variada para servir de souvenir.
Sheki - que chegou a possuir cinco caravanserai e a contar quatro centenas de lojas e oficinas de artesãos durante o século XIX - detinha uma situação estratégica na rota, funcionando como um importante entreposto entre a Ásia e a Europa. O domínio da região interessava, naturalmente, tanto aos vizinhos do norte, à Rússia, como à Pérsia. O desmembramento do império mongol de Gengis-Khan deu origem a quatro canatos, um deles o de Sheki, cuja autonomia (apesar dos acordos e tratados com os vizinhos a que esteve sujeito), instituiu o núcleo embrionário do futuro Azerbaijão. Daí o significado histórico e político para o país.
A herança mais visível a apreciada do canato é um dos mais belos palácios do Azerbaijão, o Khansarai, o palácio dos khans de Sheki, notável exemplo de arquitectura islâmica. Fica dentro das muralhas da cidadela com vista para uma parte da cidade. A decoração islâmica em padrões geométricos e arabescos está omnipresente na fachada, mas também em cada centímetro quadrado do interior; em cada sala e nos aposentos privados há representações de cenas históricas e da vida quotidiana em admiráveis conjuntos de vitrais e de mosaicos tradicionais, elaborados com técnicas que os artesãos de Sheki ainda conservam e praticam. Há um segundo palácio, conhecido como palácio de inverno, bastante menos visitado mas com o mesmo género de vitrais e mosaicos. Um pouco menos esplendorosos, mas produto da mesma técnica.
A fotogénica Qakh
Sheki não é apenas a principal referência histórica e cultural da região, com o seu património de palácios e de caravanserai e as suas tradições fabris de seda e de vitrais; é um conveniente ponto de partida para explorar a face ocidental da cordilheira caucasiana no Azerbaijão. Marshrutkas (os minibuses tão populares em todas as ex-repúblicas da URSS) e velhos e resistentes Lada (verdadeiramente históricos, também) ajudam a organizar itinerários pelos sempre verdes flancos da montanha. O ecoturismo, caminhadas e trekkings são uma crescente atracção na área, enquadrada por vários picos, alguns acima dos 3000 metros de altitude.
Em incursões com bilhete de ida e volta no mesmo dia, incluindo o apêndice de uma breve caminhada em montanha, fica Kish, um pequeno povoado famoso por via de uma igreja cristã albanesa, uma das mais antigas do norte do Azerbaijão. Aqui, o viajante interroga-se sobre os mistérios das antiguidades. Os livros falam do assunto, mas restam sombras, claro. A história destes albaneses caucasianos remonta ao século IV a. C., mais ou menos no tempo do império aqueménida - origem provável do povo e cultura azeris, que partilharam o mesmo espaço com os cristãos albaneses ao longo de séculos.
Kish tem uma excursão gémea. Da bem organizada estação de Sheki (os horários estão bem legíveis e encontra-se ali quem fale inglês), tomamos no segundo dia uma marshrutka para Qakh (os veículos afixam a versão “Qax"). Ao fim de uma hora desembarcamos numa pequena cidade incaracterística rodeada de montanhas. Parece apenas mais um centro administrativo, com gente real atarefada com os seus afazeres, ruas asseadas de fazer inveja a certas paragens europeias. Se o viajante anda em busca de vistas de postal, fotogénicas, a decepção é de durar pouco. A parte mais antiga da povoação é um relicário de arquitectura local, um rosário de casas com belas fachadas, alpendres e varandas de madeira, tudo com ar de restaurado na véspera.
Em Nidz, com a minoria Udi
Um pouco para sul, a duas horas de viagem de marshrutka, está Qabala. O museu é um dos melhores da região com o seu vasto acervo arqueológico, mas para dar um pouco mais de luz à fotografia podemos apanhar outra marshrutka para Nidz, ou Ni. É o último refúgio (juntamente com Zinobiani, na Geórgia) do povo Udi, descendente de uma das vinte e seis tribos da antiga Albânia e uma das poucas comunidades cristãs do Azerbaijão. A população é mencionada em textos tão remotos quanto os de Heródoto, Estrabão, Plínio e Ptolomeu, os mais antigos datando do século V a. C.
O Cáucaso é o último e o primeiro refúgio dos Udi. “Vivemos aqui desde sempre, esta é a nossa terra”, é a mais comum e primeira observação que se ouve em Nij, além do “Xos g?lmissiniz!” (bem-vindo!). A bela igreja de S. Eliseu vê-se como quem lê um livro antigo, um livro de iluminuras, que parece sublinhar, sem palavras, a reivindicação de uma terra prometida para a eternidade.
Tal como a de Kish, lembra um pouco os templos ortodoxos georgianos e é o principal objecto de curiosidade dos viajantes e o testemunho da precocidade do cristianismo na região. Etnicamente diferentes dos seus vizinhos, os Udi chegaram a habitar zonas do Daguestão, no sul da Rússia. Muito antes, claro, da anexação do território pelo império russo e dos atribulados episódios recriados e narrados por Tolstoi nas páginas de Hadji Murab . Antes, até, de Sheki brilhar como entreposto da Rota da Seda no Cáucaso e os albaneses locais andarem às voltas com o assédio de impérios vizinhos, como o romano, o persa, o mongol. Muito antes, enfim, da pergunta que tanta gente gosta de fazer e para a qual as respostas não são fáceis. Quem chegou primeiro à terra prometida?