Hora muda, ora não muda
Cá por mim, prefiro o primado da aproximação à hora verdadeira do que o abastardamento desta por via administrativa.
De novo a dança das horas. Desta vez, precedida de uma consulta pública europeia, por via electrónica, perguntando-se aos cidadãos ou instituições qual a opção entre manter a Hora Legal (HL) actual com a habitual Hora de Verão (HdV) ou manter a HL do período de Inverno (que é a padrão) durante o ano inteiro.
Houve 4,6 milhões de respostas, sendo que 3,1 milhões (68%) vieram da Alemanha! Portugal apenas contribuiu com 0,7% das respostas (de 0,3% dos residentes). A favor de manter todo o ano a HL manifestaram-se 84% do total. Considerando a população total da UE de 512 milhões, apenas opinaram 0,9% (e 0,75% pela opção maioritária). Mas, excluindo a Alemanha (56 milhões), estamos a falar de tão-só 0,3%. Trata-se de uma consulta respeitável, mas notoriamente sem significância relevante e até enviesada, por exemplo, face à maior ou menor info-inclusão e ao nível etário dos europeus.
Neste assunto, pertenço à minoria. Sempre preferi a HL que mais perto está da Hora Solar (HS), ou seja, da hora em que mais se aproximam o meio-dia que temos no relógio e o meio-dia solar ou verdadeiro (o momento da passagem do Sol pelo meridiano local), isto é, o tempo em que, em boa verdade, andamos mais a horas. E isso é melhor conseguido por via da mudança duas vezes por ano, assim se reduzindo a divergência entre a lei da natureza e a lei jurídica.
O Observatório Astronómico de Lisboa, autoridade legal neste domínio, elaborou um claríssimo e objectivo parecer científico sobre o assunto, para o qual vale a pena olharmos com atenção. Neste breve espaço, limito-me a referir os pontos essenciais das conclusões. Assim, é-nos dito que a melhor solução para a HL é a actualmente vigente (embora pudesse ser ainda melhor se a saída da HdV voltasse a ser no fim de Setembro e não no fim de Outubro, permitindo uma maior aproximação à HS). Todas as alternativas são piores: a) com a actual HL, mas sem HdV ter-se-ia o sol de Verão a nascer perto das 5h, ou seja, uma madrugada de sol desaproveitada seguida de um final de tarde com menos uma hora de sol; b) com a HL actual +1h e sem HdV, o sol nasceria entre as 7h45m e as 9h (!) durante cinco meses do ano, de meados de Outubro a meados de Março; c) com a HL+1 e com HdV, entre inícios de Junho e meados de Julho a noite escura só começaria depois da meia-noite. Em conclusão – e transcrevo – “O actual regime da Hora Legal em Portugal com Hora de Verão é o melhor quando comparado com as possíveis alternativas. [...] A União Europeia e o Estado português [...] deveriam apoiar e aprovar a melhoria do regime actual da Hora de Verão, alterando para o último domingo de Setembro o términus do seu período”.
Leio sempre com interesse os estudos de especialistas nas áreas da saúde e do trabalho sobre eventuais efeitos da divergência entre a HS e a HL. O relatório refere que a maioria dos estudos sobre o sono são inconclusivos e que a poupança energética é residual. Por outro lado, e nos dias de hoje, há questões fundamentais a considerar cada vez mais, quais sejam a incidência na maior ou menor segurança nas ruas, no início e fim das aulas, no risco de acidentes rodoviários, no trabalho e produtividade (designadamente no sector primário da economia).
O ajustamento entre a HL e o ritmo circadiano biológico é mais adequado na hora padrão (a de Inverno), pois que é esta que mais se aproxima da HS ou hora verdadeira. O relatório refere, aliás, que o país experimentou a actual HL sem HV em 1912-1915, 1922, 1923, 1925, 1930 e 1933, mas não mais a repetiu, pelo que “isto é um bom indicador de que milhões de pessoas, em três décadas diferentes, não apreciaram positivamente este regime de Hora”.
A eventual eliminação da HV não atinge, porém, as proporções de desvio da Hora que, durante quatro anos da última década do século XX, chegámos a ter. Nessa altura, a nossa HL era a que correspondia à de Bruxelas, Paris e Berlim (mais uma hora do que agora todo o ano).
Também neste jornal, tive então ocasião de criticar tal medida que constituiu um enorme e contra-natura crono-disparate. Por exemplo, no solstício do Verão era como se, geograficamente, Portugal e o Cabo da Roca, ponto mais ocidental da Europa Continental, estivessem num meridiano imaginário passando por São Petersburgo, Kiev e Istambul, que é como quem diz, cerca de duas horas e quarenta minutos desviado para leste. Por essa altura, só a Irlanda e o Reino Unido não foram em cantigas de zelo europeu e não aderiram ao “Tempo de Bruxelas”. Disse-se, então, que ter a mesma hora de Bruxelas facilitava os contactos com as instituições europeias e com os escritórios de advocacia lá implantados. Foi uma tentativa de um euro, não monetário, mas horário. Fracassou e uns poucos anos mais tarde, tão rapidamente quanto entrou, tão solícita foi a sair dos nossos mostradores.
Em suma, respeitemos tanto quanto possível a natureza à nossa volta e a nossa própria natureza. Cá por mim, prefiro o primado da aproximação à hora verdadeira do que o abastardamento desta por via administrativa. Ou seja, quanto mais perto a hora que temos no pulso estiver da hora que verdadeiramente é, tanto melhor.