Entre o queixume e a cegueira
“Juncker olha para fora para esquecer os problemas em casa”, escreve o Euractiv. É uma boa síntese. E um velho método.
1. Na melhor das hipóteses, o discurso de Jean-Claude Juncker foi um longo queixume sobre o estado actual da União Europeia. Na pior, um sintoma da cegueira política que domina a eurocracia de Bruxelas, fechada no seu castelo. O actual presidente da Comissão pertence a uma geração de líderes europeus para quem a integração foi e uma “obra-prima inacabada” que operou o milagre de garantir a paz num continente que viveu duas mortíferas e destruidoras “guerras civis” no século XX. Não é da geração de Kohl e de Mitterrand, que viveram a guerra e para quem o “nacionalismo é a guerra”. Mas é de uma geração que herdou esse espírito e que tentou levá-lo por diante, desde a queda do Muro e da “súbita aceleração da História” que transformou a Europa e o mundo. Como queixume, compreende-se o discurso de Juncker, o último que fará sobre o Estado da União (o nome é, ele próprio, uma ilusão ainda que benigna) diante do Parlamento Europeu, que será renovado em Maio do próximo ano. Mas nem isso justifica uma tão grande distância em relação à realidade.
2. A Europa só agora está a sair de uma crise do euro que se transformou numa crise da própria existência da União Europeia. A solidez da união monetária ainda não é à prova de futuras crises. A crise existencial, sobre o seu destino colectivo e o seu papel num mundo que lhe é cada vez mais adverso, está apenas disfarçada pela euforia da retoma económica que levou o Presidente da Comissão a fazer, há um ano, talvez o seu mais entusiástico discurso sobre o estado da União. “O vento voltou a soprar de feição”. Os efeitos sociais da globalização e, depois, os anos da Grande Recessão e da “austeridade” em toda a linha deixaram marcas profundas no seu tecido social: mais desemprego, mais desigualdades, mais precariedade, menos rendimentos.
Os conflitos que incendiaram a sua vizinhança, sobretudo a sangrenta guerra da Síria, lançaram para as suas margens uma vaga imparável de refugiados, multiplicando os que fogem à guerra e à miséria de África. Os sectores mais vulneráveis das populações reagiram com medo, vendo os recém-chegados, na sua maioria de origem islâmica, como uma ameaça ao seu modo de vida. O medo tornou-se rapidamente o alimento dos movimentos populistas e nacionalistas, que hoje desafiam as suas democracias liberais. Juncker sabe tudo isto. Como sabe que, até hoje, a sua Comissão não conseguiu levar os governos aprovar uma única medida que comece a resolver a problema. Ergueram-se fronteiras que ainda não foram desmanteladas. Nenhuma medida destinada a reformar a políticas de asilo viu a luz do dia. Os 140 mil refugiados que a Comissão se propunham dividir entre os Estados membros não saíram do sítio. Na Grécia, a pressão torna-se insuportável. A Itália mudou radialmente de política: Matteo Salvini prometeu “varrê-los rua a rua, casa a casa”. Angela Merkel perdeu o seu combate fundamental: impedir a ascensão da extrema-direita na Alemanha. Fez ontem no Bundestag o discurso de quem não baixas os braços. Juncker avisou para o “veneno pernicioso” do nacionalismo. Fez bem. A Europa, que nasceu da deslegitimação do nacionalismo, jamais sobreviveria ao dia em que ele dominasse as suas democracias. Este combate devia enformar as iniciativas legislativas da Comissão. Não é assim.
Juncker voltou a dizer o que a Europa sempre diz quando a imigração se torna num problema político sério: é preciso ir à raiz, ajudando ao desenvolvimento dos países africanos. As verbas que propõe são migalhas ao pé dos 60 mil milhões que Pequim acaba de oferecer a um continente onde desafia abertamente a influência europeia. Nada garante que o “acordo de comércio livre” que prometeu não tenha o destino do acordo com o Mercosul, há 12 anos “bloqueado” pela PAC. No parágrafo seguinte defende uma política de imigração de mão-de-obra qualificada, drenando ainda mais depressa os recursos humanos do continente africano.
3. No seu discurso, não há hierarquias. Está lá tudo. Cabe lá tudo. Todos os chavões. Da política externa, para afirmar a Europa no mundo, à digitalização da economia, da ajuda a África à afirmação do euro como moeda internacional a par do dólar, da defesa do multilateralismo até ao fim da mudança da hora. Fala da Defesa mas não fala das ameaças. Fala do multilateralismo, mas ignora um mundo em que a ordem liberal está a ser substituída pela velha ordem da relação de forças entre grandes pólos de poder, que nem todos comungam dos valores do mundo Ocidental. Aos europeus que têm medo, propõem-lhe uma Europa soberana. Fala do reforço da Guarda Costeira. Alerta para o nacionalismo, mas não menciona uma única vez a Hungria, em processo de “moção de censura” pelo Parlamento Europeu, imediatamente antes e depois do seu discurso. Fala numa Europa “forte e unida”, numa altura em que ela nunca esteve tão fraca e tão dividida. Diz do "Brexit" o óbvio: que lamenta. Lá no fundo, ainda não morreu o velho sentimento de que os britânicos eram o “cavalo de Tróia” dos americanos e que a Europa será mais feliz sem eles. Ignora a contradição entre o seu apelo a uma União capaz de se defender e de se afirmar como “actor global” e o vazio deixado por um país habituado a usar o seu poder militar, sem o qual a afirmação da Europa no mundo não é a mesma coisa.
4. Mas talvez o momento mais significativo da ilusão europeia (que não é só dele) esteja na forma como abordou as relações comerciais com os EUA e o papel internacional do euro. Nunca prenunciou a palavra “Trump”, não se sabe se por uma razão diplomática, se como forma de esconjurar o mal. Num discurso estafado de tão repetido, lembrou que a União é o maior bloco comercial do mundo e que a sua força é suficiente para impor ao seu grande parceiro os seus interesses. A realidade é um pouco diferente. Quando o Presidente americano iniciou a sua política proteccionista, visando a China e ameaçando a Europa, a reacção começou por ser de susto. Depois, Bruxelas falou grosso. Acabou por abrir uma fase de “apaziguamento”, que está agora em curso, através de negociações que parecem bem encaminhadas. Há poderosos interesses comuns, incluindo o combate ao dumping chinês e às restrições ao investimento.
O caso do euro é ainda mais paradigmático. Desde o seu lançamento que os europeus dizem que ele existe, também, para afirmar o poder da Europa no mundo, a par do dólar. A crise financeira, contrariando todas as previsões, não “matou” a moeda americana, que continua de boa saúde. Juncker queixou-se amargamente do facto de 80% das importações de energia serem pagas em dólares. Quer que passem a ser pagas em euros à Rússia. O problema é que a realidade não se altera por decreto, muito menos depois de uma crise que ia destruindo o euro. Os EUA reagiram à crise com uma rapidez e numa dimensão muito maiores. Reviram a regulação dos mercados financeiros muito mais depressa. Iniciaram a recuperação muito mais cedo. O velho mito de que um Presidente dos EUA que choque de frente com a Europa é uma “bênção” para a afirmação europeia nunca se concretizou. Trump vai mais longe: alimenta as divisões europeias, numa reviravolta de 180 graus da política externa americana. É mais um enorme risco que a Europa corre. “Juncker olha para fora para esquecer os problemas em casa”, escreve o Euractiv. É uma boa síntese. E um velho método.