Tancos: o furto a que se furta Costa

É altamente censurável ver um Governo dizer que fez tudo o que tinha a fazer quando não fez nada, rigorosamente nada.

1. Um imperativo. Por muito que não se quisesse voltar ao tema grave – mesmo muito grave – de Tancos, as declarações de ontem de António Costa não deixam alternativa. Não podem passar em claro, não podem passar sem estupefacção, não podem passar sem reparo. Na verdade, impõe-se examiná-las, confrontá-las com declarações anteriores e fazer perguntas, as perguntas que elas inevitavelmente suscitam. As nossas Forças Armadas, os nossos militares e o povo português em geral, bem como o valor superior da sua segurança, merecem esta insistência.

2. As declarações. Pois bem, o primeiro-ministro Costa fez ontem declarações em reacção à avaliação justa e certeira do presidente do PSD de que o Governo foi simplesmente incapaz de dar qualquer resposta ou esclarecimento sobre um caso tão grave, deixando as Forças Armadas expostas ao vexame. E de que, diante dessa impotência e desistência do Governo, já só resta, como última e única instância, a investigação do Ministério Público. Ademais, instou o Ministério Público a ser o mais célere possível, justamente para tentar repor o prestígio das forças militares e eventualmente possibilitar a compreensão do sucedido e respectivas implicações. Na sua reacção, o primeiro-ministro disse que o Governo já fez tudo o que tinha a fazer e que, pasme-se!, o fez nas 48 horas imediatamente seguintes. Afirmou ainda que a responsabilidade estava agora na investigação criminal sob alçada do Ministério Público, mas que nada dizia quanto à celeridade do inquérito, pois não queria interferir na autonomia do Ministério Público.

3. A contradição. Comecemos pelo menos importante. No seu estilo subtil e insidioso, Costa procura dar um remoque ao líder do PSD, insinuando que este estaria a “pressionar” o Ministério Público. É preciso desfaçatez, mesmo muita desfaçatez, ou não fosse o primeiro-ministro quem, em entrevista ao Expresso de 11 de Agosto, assumidamente mostrou estranheza por “tanta demora”! Diz Costa: “Ouça, seguramente a investigação do Ministério Público deve ter revelado uma complexidade que nós desconhecemos para justificar tanta demora numa investigação de um caso de polícia.” Eis uma frase que, aliás, exibe três pérolas do malabarismo político. Primeira, esta contradição: não pressiona os procuradores, mas não compreende “tanta demora”. Segunda, Tancos foi afinal um mero caso de polícia (como uma simples rixa ou um vulgar assalto). Terceira, até agora nem militares nem Governo foram capazes de esclarecer seja o que for, mas não percebem “tanta demora” por parte do Ministério Público. Se era assim tão simples, porque não conseguiram nem averiguar nem explicar o que se passou? 

4. Uma pergunta. O primeiro-ministro e o ministro da Defesa falam como se, diante de um caso com estes contornos, só houvesse lugar a um inquérito criminal. Mas esta posição não tem o mínimo de cabimento nem de subsistência. Houve uma comprovada falha de segurança, de resto, com repercussão internacional. Independentemente da questão criminal, algo fracassou na segurança das instalações militares portuguesas. Como pode o Governo dizer que fez tudo o que lhe competia, quando não há um inquérito nem o correspondente relatório a auditar as falhas de segurança e as razões que tornaram aquela instalação vulnerável a uma vulgar acção criminal (a julgar pela qualificação de “caso de polícia”)? Agora os quartéis e os arsenais portugueses estão à mercê da acção de vulgares larápios? Como podem as Forças Armadas viver sem uma auditoria e dizer que tudo está bem, quando o material roubado foi encontrado através de uma denúncia anónima? E que esse material continha objectos que não foram subtraídos em Tancos e não continha todos os que foram? Qual é o Exército respeitável que assiste a acontecimentos deste jaez, sem ordenar e realizar uma extensa investigação interna, de cariz administrativo, operacional e militar (sem qualquer natureza criminal)?

5. Outra pergunta. Em qualquer corpo administrativo, mas mais ainda na corporação militar – pautada por um especial princípio de coesão e pelo consequente nexo hierárquico –, existem mecanismos de averiguação interna e de apuramento de responsabilidades. Sempre que há falhas e faltas, susceptíveis de imputação pessoal, existe um procedimento disciplinar que corre independentemente de qualquer responsabilidade de carácter criminal. A responsabilidade administrativa e disciplinar não exclui nem é incompatível com a responsabilidade penal. Tanto é assim que, a dada altura, chegaram a ser ordenadas “exonerações temporárias” ou “provisórias” (do ponto de vista jurídico, a terminologia é esdrúxula, para não dizer anedótica). Sendo evidente que há falhas de segurança de carácter militar, onde estão os procedimentos disciplinares, os respectivos inquéritos, os arguidos averiguados em processo disciplinar interno? A culpa administrativa, disciplinar, hierárquica morreu solteira? E se, como tão claramente atestou o presidente do PSD, as Forças Armadas e o Governo revelaram uma absoluta incapacidade ou impotência, não devia ser assumida uma responsabilidade objectiva? Que chefia militar é esta que, perante a incapacidade de explicar o sucedido e de apurar os responsáveis pelas falhas de segurança, não dá a cara e assume a responsabilidade?

6. De segredo em segredo. É altamente censurável ver um Governo dizer que fez tudo o que tinha a fazer, a empurrar a responsabilidade para magistrados e polícia criminal, quando não fez nada, rigorosamente nada. O Governo esconde-se em Tancos por detrás do segredo de justiça (que em nada tolhe as diligências que tinha de fazer ou mandar fazer). Como se esconde, no caso dos grandes devedores da Caixa, por detrás do sigilo bancário. Ou se escondeu, nos incêndios mortais do ano passado, atrás da dor das famílias e do respeito por elas. Há sempre um segredo – muito conveniente – para passar culpas e alijar responsabilidades. Numa governação incompetente, há sempre um segredo perto de si.

SIM e NÃO

SIM. Leonor Beleza. O centro para o cancro do pâncreas, criado por mecenato espanhol da família Botton, mostra o dinamismo e o prestígio que dá à Fundação Champalimaud.

NÃO. Suécia. A ascensão das forças de direita radical, seguindo o padrão dos outros Estados nórdicos, confirma uma grave tensão que atravessa as democracias ocidentais.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários