Foi numa viagem a Angola que Nuno Gomes viu pela primeira vez uma ilha flutuante criada pela natureza. Os papiros, plantas aquáticas que podem ter uma altura de quatro a cinco metros, cresciam desenfreadamente no rio Kwanza. Com a força, as raízes soltavam-se das margens e formavam ilhas independentes que navegavam água fora e levavam pássaros e insectos a bordo. “Na prática, o que nós estamos a fazer é imitar a natureza”, começa por contar o biólogo ao P3.
No regresso a casa, o também director executivo da Bluemater — empresa portuense focada em soluções sustentáveis para o tratamento de águas — documentou-se sobre o que havia sido feito nesta área e verificou que o conceito de ilha flutuante não era novo. Mas as estruturas existentes eram feitas de materiais sintéticos como plástico e poliuretano. Faltava escolher o material para criar um sistema amigo do ambiente.
“A cortiça flutua naturalmente e é renovável e sustentável”, afirma Nuno Gomes, acrescentando que a prioridade era “criar algo que pudesse ser aplicado em várias situações diferentes”. Em parceria com a corticeira Amorim e a empresa de prototipagem Ideia.M, a Bluemater desenhou uma placa com vários orifícios que leva um encaixe tipo Lego e funciona como uma Fito-ETAR (estação de tratamento de águas residuais) ambulante, conceito que designa o tratamento de águas através de “plantas aquáticas que são colocadas no fundo de lagoas ou tanques poluídos para absorver nutrientes”.
Em Portugal, há cerca de 600 Fito-ETAR, mas a concretização desta ideia tem-se tornado problemática pela eutrofização (crescimento excessivo de plantas aquáticas) das águas. “As plantas têm um tempo de vida muito curto, porque à medida que as lamas vão aumentando, sufocam-nas”, diz o biólogo. O projecto Cork Floating Island, que envolveu um investimento de 50 mil euros, surge, precisamente, para contornar os problemas de manutenção devido à acumulação de resíduos. Ao contrário das Fito-ETAR convencionais, a ilha flutuante de cortiça implica, como o nome sugere, que as plantas fiquem a flutuar na água e possam ser retiradas para ser podadas e cuidadas mais facilmente.
Transformar o lixo em matéria-prima
Além do tratamento de águas e biorremediação — termo que se refere à utilização de organismos vivos para reduzir a poluição —, a ilha flutuante de cortiça serve para recuperar ecossistemas degradados e para praticar jardinagem aquática. Para isso, são utilizadas plantas aquáticas como o caniço d’água e a alface d’água. “A alface não é tão óbvia, mas cresce muito bem nestas condições”, conta Nuno Gomes. O biólogo salienta que esta espécie “já é cultivada a nível industrial recorrendo à hidroponia”, método de cultivo em que as plantas são criadas com base em soluções que contêm água e nutrientes e sem precisar de estar inseridas no solo.
Este é, aliás, um método que está a ser trabalhado pela Bluemater, que também tem vindo a desenvolver experiências com tomateiros, morangueiros e arroz. “Se pensarmos que temos tantas massas de água fundas como as barragens onde não podemos cultivar, se calhar faz sentido cultivar o arroz a flutuar”, assinala Nuno Gomes, que lança a possibilidade de “se poder aumentar a área de exploração do arroz” caso se verifique o sucesso do ensaio científico. Estes alimentos, contudo, não são para consumo humano — pelo menos para já.
A Bluemater tem, neste momento, várias experiências no terreno em locais como Baião e Régua. No porto de Leixões, está a ser feito um trabalho com plantas halófitas – espécies que se dão bem em água salgada e que podem ter um valor culinário – como a salicórnia. Esta planta é muito utilizada na aquicultura, de acordo com Nuno Gomes, “porque acumula sal nas folhas e utiliza como fertilizante os resíduos produzidos pelos peixes”.
No decorrer dos testes em laboratório e em campo, a equipa de investigadores de instituições como o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Cimar) e o Centro de Ciências do Mar (CCMAR), respectivamente das universidades do Porto e do Algarve, verificou que a estrutura se tornava, ela própria, um ecossistema propulsor de biodiversidade. “As superfícies são porosas e ficam húmidas, criando fungos, microalgas e musgos”, diz o biólogo. No Parque do Buçaquinho, em Ovar, a ilha instalada há três meses já foi adoptada como habitat de patos, mergulhões, anfíbios e peixes “que se abrigam nas raízes que ficam pendentes para reproduzir”.
No fundo, o objectivo é promover o reaproveitamento de desperdícios e fechar o ciclo da natureza. “As águas residuais são normalmente tratadas como lixo, mas para nós são uma matéria-prima”, sublinha Nuno Gomes.
Actualmente, a Bluemater está a estudar uma solução para cinco lagos em Lisboa e tem projectos em países como Dubai, França, Holanda e Japão. Em Portugal, o Governo está a preparar uma estratégia nacional de reaproveitamento das águas residuais para rega de jardins, lavagem de carros, autocarros, ruas, ou contentores, sistemas de refrigeração, uso agrícola e para os autoclismos.