É preciso ser de ferro para resistir no Brasil
Dois meteoritos resistiram ao incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro e a sua atribulada história espelha a evolução do Brasil.
Se há povo capaz de afastar tristezas com fantasias é o brasileiro, fazendo nascer de uma tragédia um chiste ou de uma desgraça um samba. Mas, como se diz na expressão popular, há momentos em que ninguém é de ferro e o Brasil está a viver, há já demasiado tempo, um desses momentos. Mas se ninguém é de ferro, e por isso sofre, há algo que é mesmo de ferro e por isso resiste. Nesse pesadelo que foi o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, reduzindo a cinzas 200 anos de História, entre os 20 milhões de peças do seu espólio há duas sobrevivências de vulto: os meteoritos Bendegó e Santa Luzia, ambos robustos. O Bendegó, com 5,3 toneladas, é composto de ferro/níquel e o Santa Luzia, com 1,9 toneladas, é composto por ferro em 90%, segundo explicou anteontem ao jornal O Globo o professor de astronomia Manoel Alves Rodrigues Júnior.
Porém, mais do que a composição destas rochas, é a sua atribulada história que melhor retrata a evolução do Brasil. N’O Globo, Paula Resende e Vítor Santana resumiram num texto, no dia 4 de Setembro, a história do Santa Luzia. Caiu numa fazenda da cidade de Santa Luzia (mais tarde rebaptizada Luziânia), no dia 1 de Junho de 1919, provocando um abalo sísmico. O vaqueiro que o achou decidiu vendê-lo. Mas o comprador, que não imaginava a dimensão e peso da “peça” comprada, não conseguiu levá-lo dali e assim a existência do meteorito tornou-se pública. Depois veio a disputa pela sua posse, que só terminou quando a comunidade científica conseguiu remetê-lo para o Museu Nacional. O que não foi fácil: levado num carro de bois, que numa só semana “quebrou três vezes”, fez o resto da viagem por camião e caminho-de-ferro. Chegou ao museu em 1928.
Mas já tinha à sua espera um “ancião” da sua estirpe: o Bendegó. Deste, o site brasileiro de tecnologia e ciência Meio Bit traçou ontem, pela pena do carioca Carlos Cardoso, uma bem-humorada história. Ou, como o próprio escreveu, “uma historinha que representa muito da relação do Brasil com ciência, nossa teimosia, burrice e malandragem.” Vale bem dispensar uns minutos para a ler na íntegra, a começar pela irresistível descrição que Cardoso faz do Bendegó: “É um dos maiores meteoritos do mundo, e por bilhões de anos vagou pelo Sistema Solar até que encontrou Wellington, um asteróide amigo que deu a dica: ‘Você já foi à Bahia, nego? Então vá!’. E com esse empurrão que faltava sua órbita se alterou e ele entrou em rota de colisão, e alguns milhares de anos atrás causou uma explosão considerável e um clarão que seria imediatamente registrado na história dos índios, se eles tivessem inventado a escrita, claro.” Caído em Monte Santo, só muito mais tarde foi descoberto por um jovem pastor, Domingos da Costa Botelho. Mas quem ficou com o crédito, escreve Carlos Cardoso, foi o pai, Joaquim da Motta Botelho. Isto em 1784. Sabendo o governador da existência da pedra, “fez o que todo político acomodado faria: mandou buscar.” E também aqui foi chamado um carro de bois, puxado por doze juntas dos ditos. Azar: a pedra resvalou por um barranco e foi parar ao rio Bendegó, onde ficou uns cem anos a ganhar ferrugem. Até que um químico inglês na época a trabalhar para o governo da Bahia, Aristides Franklin Mornay, desconfiando (com razão) que ali estaria um meteorito, se interessou pela pedra e elaborou sobre ela um estudo. Quatro anos depois, em 1820, dois naturalistas foram estudar a pedra e, “para conseguir tirar amostras acenderam uma fogueira em torno do Bendegó por 24 horas.” Foi a primeira vez que a pedra ardeu. A segunda foi agora, na tragédia do Museu Nacional, muito depois de mil peripécias que a levaram, finalmente, a ser transportada para o museu, onde após uma longa viagem foi recebida em 1888 pela princesa Isabel, filha do imperador Pedro II.
Ora olhando em volta, no panorama actual do Brasil, onde outros incêndios (na política, na sociedade, na economia, na justiça) lavram por entre a indignação ou o conformismo das gentes, há-de haver algum outro meteorito que resista à incandescência geral. Não sabemos o seu nome, mas, a existir, que valha ao menos por um Brasil que teima em não se deixar reduzir a cinzas.