Lux-Frágil: há 20 anos a oferecer o prazer de fazer
Esta terça-feira inaugura em Lisboa a exposição Paradisaea. Há 20 anos nascia o Lux-Frágil. Em Março morreu Manuel Reis. O designer e curador da exposição Fernando Brízio resume tudo assim: “Manuel Reis era quase um encenador, um designer, um possibilitador de felicidade. O Lux ofereceu-nos isso nestes 20 anos.”
Foi a 29 e não foi acaso. Com Manuel Reis, que morreu a 25 de Março deste ano, aos 71 anos, nada era por casualidade. Dizíamos que foi a 29 de Setembro de 1998 que, em Lisboa, no Cais da Pedra, em frente à estação de comboios de Santa Apolónia, num edifício de betão de 1910, onde antes funcionara uma empresa de estiva, inaugurava o Lux-Frágil.
Vinte anos depois ninguém lhe é indiferente. Percebeu-se isso aquando da morte de Manuel Reis há meses. Para uns é o caso mais paradigmático em Portugal de como um clube pode ser um espaço de música, design, arquitectura, arte, moda, luz ou efeitos visuais, palco para a performance individual ou colectiva, impulsionando criadores, afirmando novas linguagens sonoras e, nessa dinâmica, posicionando-se como lugar de aceitação da diferença e novos estilos de vida, constituindo-se como símbolo para o exterior da emergência de uma Lisboa mais cosmopolita.
Outros acham que é tudo um grande exagero, que se trata apenas de um negócio, de um reduto elitista onde se dança e bebe copos, nem sequer aceitando que existem inúmeros exemplos de espaços que ficaram na história (The Flamingo em Las Vegas nos anos 1940, o UFO em Londres nos anos 1960, o CBGB ou o Studio 54 na Nova Iorque dos anos 1970, a Haçienda na Manchester do final dos anos 1980, ou o Tresor e Berghain na Berlim das últimas décadas), porque foram capazes de projectar ideais de produção cultural, sendo incubadoras de novos conceitos ou tendo um papel importante na reorganização de espaços urbanos, reflectindo e ao mesmo tempo contribuindo para mudar o seu tempo e adquirindo conotações emblemáticas. Passaram a ser mais do que lugares onde pessoas se encontram para socializar ou dançar, mas sendo isso também.
No caso do Lux foram os arquitectos Margarida Grácio Nunes e Fernando Sanchez Salvador que assinaram o projecto, criando um bar no primeiro piso, uma discoteca no rés-do-chão e um terraço no último. Na altura muitos acharam que era ambicioso demais. Manuel Reis havia conquistado credibilidade à frente do Frágil, um dos lugares que impulsionou nos anos 1980 o Bairro Alto, transformando-o na altura no novo centro da Lisboa boémia e criativa. Mas o Frágil era interior, pequeno, coeso. Era mais fácil criar sentimentos de pertença. O Lux era grande, disseminado, exposto, com o horizonte do rio Tejo à sua frente.
Correspondia a uma nova forma de estar da cidade. Mais plural, cultural e socialmente. E ao mesmo tempo parecia ajustar-se a um momento de auto-estima em alta. Em 1994 a cidade havia sido Capital Europeia da Cultura, o que acabou por constituir um momento de afirmação da cultura portuguesa, e por aqueles dias a Expo-98 estava no final, com a maioria dos portugueses a sentirem-se orgulhosos. Mas havia reticências.
O próprio Manuel Reis, nos anos iniciais, se interrogava se o Lux não havia sido um empreendimento excessivo. “Nunca se arrependeu, mas houve momentos em que se assustou com a dimensão que tudo isto tomou, o número de pessoas que aqui trabalha e as famílias correspondentes. É uma grande responsabilidade e ele sentia-o por vezes.” Quem o diz é Lúcia Azevedo, directora geral, pertencente ao pequeno núcleo de empregados a quem Manuel Reis passou o testemunho, atribuindo-lhes a responsabilidade de tomarem em mãos e continuarem o Lux.
“Ele percebeu que a cidade estava a mudar e que o Frágil e o Bairro Alto já não iam de encontro às suas expectativas”, acrescenta o programador Pedro Fradique, também pertencente ao núcleo de colaboradores fiéis, enunciando que a festa do 10º aniversário do Frágil nas instalações da antiga Fábrica da Tabaqueira ou a passagem de ano em 1995 no Convento do Beato acabaram por servir de ensaio para o que aí vinha. “Ele foi percebendo que a massa crítica se alargara, a cidade se democratizara e que o Frágil já era pequeno para as suas realizações. E aí nasceu o Lux.”
A festa do 20º aniversário será a 2 de Outubro. Mas antes, já esta terça-feira, inaugura a exposição Paradisaea, tendo por mote os 20 anos do Lux-Frágil, numa co-produção entre o espaço e a EGEAC, que estará patente nos antigos celeiros do Hub Criativo do Beato, em Lisboa, entre 11 de Setembro e 11 de Novembro. A ideia já germinava na mente de Manuel Reis há algum tempo e, segundo Fradique, a morte do designer gráfico Ricardo Mealha em 2015, e um ano depois, do fotógrafo Pedro Cláudio, com quem havia colaborado desde o início, intensificou a vontade. Finalmente, o ano passado, depois de ter visto a exposição PIN – Vinte e Três: Joalharia contemporânea da Ibero-América, que esteve patente na Sociedade Nacional de Belas Artes, com design expositivo de Fernando Brízio, essa intenção adquiriu contornos mais concretos.
“Depois de ter ido à exposição do PIN, na qual desenhei o espaço, ele telefonou-me e, mais tarde, em Dezembro acabou mesmo por me convidar. Disse-me: ‘quero que faças uma exposição sobre os 20 anos do Lux’”, lembra Brízio, um dos designers portugueses de maior projecção internacional, que tem concebido inúmeras exposições, cenários e espaços ao longo dos anos. “Fiquei um pouco surpreso. Nunca fui muito ao Lux porque não saio à noite. Fui apenas a alguns acontecimentos e participei em 2003 com um projecto na festa em que foi convidada a Dita Von Teese. Mas nada de mais. Quando lhe perguntei para quando seria a exposição, disse-me: 29 de Maio. Percebi que era uma data e um número com significado e que fazia questão que assim fosse. E eu assustei-me porque não havia sequer ainda espaço ou orçamento.”
Ficou de tal forma preocupado que propôs desenhar o espaço, mas a curadoria ficaria a cargo de outra pessoa. “E ele disse que não, que queria que eu fizesse as duas coisas. Quando comecei a pensar na exposição imaginei o design gráfico e a comunicação, mas disse-me de imediato que me dava carta-branca para fazer o que quisesse.” E assim foi. A produção é de Carla Cardoso e a única vontade manifestada por Manuel Reis era que a exposição viesse a decorrer na zona Oriental porque em 1998 o Lux havia sido um dos primeiros sinalizadores para esse lado da cidade. À época existiu quem projectasse que essa área (Marvila, Xabregas, Beato), entre o Parque das Nações e o Lux, iria sofrer um efeito de renovação. Não aconteceu. Mas surgem agora sinais que o parecem indiciar.
Um dos primeiros lugares que visitaram foi o da Manutenção Militar, um espaço concessionado em 2016 pelo Exército à Câmara Municipal de Lisboa, que pretende tornar-se numa grande incubadora de empreendorismo e cultura. “Os espaços que nos deram a ver eram bons, mas muito marcados pelo passado industrial, o que criava alguns constrangimentos, até que descobrimos os celeiros”, recorda Brízio.” E será ali que tudo irá acontecer. “É um espaço grande, apenas um pouco quente, que irá ser demolido depois da exposição, para ser construído um parque de estacionamento com sete andares”, afirma.
Depois de escolhido o local, procedeu-se à recolha de todos os materiais disponibilizados. “Havia imensa coisa. Um arquivo digital com fotografias da Luísa Ferreira. Muitas pastas de fotografias entre 1998 e 2005. Imensos materiais gráficos. Alguns objectos, apesar de uma série deles terem desaparecido e de outros estarem danificados, tendo sido agora recuperados. Peças de vestuário também. E muito material vídeo.”
E a sua percepção da actividade do Lux transformou-se. “Surpreendeu-me a extensão e profundidade daquilo a que tive acesso.” Tinha ido a algumas festas, conhecia o material gráfico, mas ter acesso ao todo permitiu-lhe ter uma visão global. “Os bastidores das festas por exemplo, as pessoas a serem arranjadas, as histórias que se pretendiam contar; enfim, a sequência de toda aquela grande encenação é inesperado. E depois quando olhas para 20 anos de fotos também vês as pessoas a envelhecer, a mudarem de parceiros, a viver, no fim de contas. E cheguei ao fim com a ideia de que a matéria de trabalho do Manuel Reis, e do Lux, é a felicidade, o prazer, criar um espaço de liberdade onde se possam viver momentos que de outra forma não se viveriam. Talvez através da música se possa atingir um estágio de consciência diferente e essa dimensão interessou-me muito. Daí também o nome da exposição, Paradisaea. Principalmente nas festas, o Manuel Reis era quase um encenador, alguém que criava um dispositivo que permitia às pessoas transfigurarem-se. Há ali um lado de teatro ou ópera, onde todos podem participar como personagens.”
Paradisaeini é o nome dado a uma tribo de aves passeriformes pertencentes às aves-do-paraíso. Têm uma plumagem exuberante e o seu corpo modifica-se durante as danças de exibição que fazem para seduzir. As encenações que produzem incluem coreografias, formas inesperadas, ornamentações luxuriantes, cânticos e sons produzidos pelo bater das asas. Fazem-no nas clareiras da floresta, como se fossem pistas de dança, cuidadosamente preparadas, que intensificam o esplendor do momento.
“A matéria de trabalho ou de invenção do Lux é a criação de um dispositivo que proporciona essa dimensão, essa felicidade, esse prazer, daí a analogia com esse grupo de aves que dançam, se transformam, fazem sons, preparam uma arena onde dançam, colocando folhas ou bagas vermelhas, criando no fim de contas uma encenação para seduzir”, reflecte Brízio. “Por outro lado, 'paradisaea' que dizer também terreno ou sítio de prazer e quis explorar aqui muito essa ligação com algumas necessidades primordiais – o prazer, a felicidade, o ouvir música.”
A formação de base de Brízio é design de produto. Nunca lhe passou pela cabeça centrar a exposição na música, por exemplo, apesar da afirmação do lugar se ter feito muito a partir da forma como ao longo dos anos foi antecipando ou acompanhando acontecimentos relevantes nesse campo.
No imaginário de muitos ficaram concertos com Prince, Thievery Corporation, St. Germain, Cinematic Orchestra, LCD Soundsystem, Antony, The Kills, Animal Collective, Beach House e Nicolas Jaar, ou sessões DJ com 2 Many DJs, Richard Dorfmeister, Tiga, Boys Noize, François Kevorkian, DJ Harvey, Ricardo Villalobos, Michael Mayer ou Laurent Garnier, isto para além do papel de algumas figuras residentes como Rui Vargas, Dexter, Zé Pedro Moura, Leonaldo de Almeida, Tiago, Yen Sung, Pinkboy ou Switchdance.
A ele interessou-lhe o todo. “Tentei que a exposição mostrasse o Lux como laboratório de criação”, diz. “Outra forma de olhar para ela é ver o Manuel Reis como um designer, alguém que imaginou e concebeu o Lux, trabalhando com outras pessoas, numa sucessão de camadas que vão sendo construídas e que criam a identidade do lugar. Quando ele partia para as coisas tinha sempre uma ideia clara do que pretendia e escolhia as pessoas a partir dessa noção. Existe um trabalho de coordenação tremendo. Os espaços e a comunicação eram sempre imaginados por ele.”
A inauguração estava pensada para 29 de Maio, mas a partir do agravamento do estado de saúde de Manuel Reis os planos foram alterados. Nunca quis ter protagonismo na exposição, diz Brízio, e para o fim, quando começou a ser nítido o que iria suceder, receou que a mesma iria parecer uma homenagem, o que não desejava. “A exposição não é de forma nenhuma sobre o seu legado, mas é inevitável que as pessoas se projectem nele a partir do que irão ver. É incontornável.”
A mostra vai estar organizada em três salas diferentes, numa área total de 2000 metros quadrados. Numa delas dá-se conta das transformações que o espaço foi sofrendo e estará também o design de comunicação em evidência, entre cartazes, flyers, convites ou a revista e jornal produzidos no espaço. Algumas das encenações mais marcantes – da celebração de David Bowie em 2016 à festa das saias em 2007 – passando pelas passagens de ano, também estarão em evidência, embora Brízio previna que não lhe interessa reproduzir fotos como nas redes sociais, mas sim realçar os dispositivos que envolvem as pessoas. “Aqui, nesta segunda sala”, diz ele, enquanto percorremos o lugar, “vamos ter imenso material vídeo, com auscultadores para quem quiser ouvir a música.”
Nessa sala vão estar dispostos 19 ecrãs de 43 polegadas, embora algum material vá ser também projectado em grande formato. E na terceira sala vão estar objectos ou peças de vestuário. “Será a mais onírica e atmosférica, mais encenada, com um trabalho de luz mais cuidado”, afirma. “As outras são mais técnicas, apesar de terem poucos materiais. Vai estar tudo legendado para se perceber quem fez o quê e quando, ao mesmo tempo que permite ter um olhar sobre a evolução das linguagens.”
Ao longo das três salas será possível sinalizar muitos dos criadores que ao longo dos anos foram colaborando com o Lux, entre artistas plásticos (Ana Vidigal, João Pedro Vale, Vhils, Vasco Araújo, João Onofre, Joana Vasconcelos, Pedro Cabrita Reis, Mafalda Santos ou João Paulo Feliciano), designers gráficos (Ricardo Mealha & Ana Cunha ou Diogo Potes), arquitectos (Alberto Caetano), criadores de moda (Alexandra Moura, Dino Alves, Filipe Faísca ou Lidija Kolovrat), gente do teatro e da performance (Mónica Calle ou André e. Teodósio), fotógrafos (Luísa Ferreira ou Pedro Cláudio), videastas (Miguel Maurício, Francisco Rocha ou Daniel Blaufuks), ou o omnipresente João Botelho, o cineasta que se foi transformando numa imagem iconográfica nos últimos anos na pista de dança do Lux.
Na preparação Brízio não teve nenhum modelo. A única referência foi uma mostra patente no alemão Vitra Design Museum, que explora a relação entre o design e a arquitectura com a cultura dos clubes. “Mas eles têm quatro anos para conceber uma exposição e aqui isso nunca poderia ser”, ri-se ele, enunciando que viu fotos e o catálogo. “Eles também expõem o material gráfico associado aos clubes e mostram um pouco da história arquitectónica dos edifícios, como aqui, mas existe uma contextualização histórica muito diferente. Por outro lado recriam também alguns ambientes referentes a esses clubes. Aqui isso nunca me interessou. O Lux é aqui ao pé. Para vivenciar a coisa o melhor é ir lá.”
Através daquilo que nos é dado a ver não acedemos ao tempo histórico de Portugal. Pelo menos de uma forma directa. Mas alcançamos a forma como o espaço acaba por ser relevante na história de vida dos indivíduos. “Vamos até expor alguns e-mails que nos pareceram significativos para mostrar essa relação, como um casal que menciona com emoção que esteve na festa do David Bowie e como aquilo foi marcante, comunicando que passados nove meses tiveram um filho. Enfim, esse tipo de coisas, que são reveladoras da vida a acontecer. E isso é fundamental para perceber que o Lux não é uma coisa material, aquilo somos nós, é o que fica em nós. Obviamente é um dispositivo material que serve para desencadear acções e para vivermos determinadas coisas lá dentro, mas depois o importante é o que é produzido em nós. O que fica e perdura em nós.”
Aquando da morte de Manuel Reis, percebeu-se que muita gente ainda tem alguma resistência em olhar para um clube, neste caso o Lux, como algo mais do que um sítio onde se vendem copos e se dança. Há uma reflexão a fazer que a presente exposição talvez ajude a criar. “Parece-me interessante que exista diferentes perspectivas”, reflecte Brízio.
“O meu olhar tem muito a ver com a minha formação. A mim interessa-me o design quase como uma coisa antropológica, a capacidade humana de conceber coisas, e não como algo que nomeia objectos. O Lux foi um desafio. Dei por mim a pensar o que era aquilo. Todos os textos que li nomeavam o Manuel Reis como empresário. Claro que ele tinha de ter algum êxito empresarial, mas acima de tudo concebeu um dispositivo multidisciplinar extraordinário, em que a música em combinação com outras dimensões tem um poder transformador. E ele tinha consciência disso tudo. Era quase um encenador, um designer, um possibilitador de felicidade. O Lux ofereceu-nos isso nestes vinte anos.”
No início do corrente ano o Lux começou uma série de festas que tinham por mote a celebração dos 20 anos, numa altura em que se estava longe de prever o que viria a acontecer meses mais tarde. Nome dessa série de acontecimentos: Life Changing. “Até isso é incrível. Até essa afirmação, essa ideia de que a vida está a mudar, parece não ter sido inocente, mesmo que saibamos que não foi assim”, exclama Brízio numa alusão ao facto de Manuel Reis ser meticuloso nas suas acções. Até ao fim.
Aos colaboradores mais próximos disse-lhes que a festa não podia parar e que contava com eles. A passagem de testemunho estava a ser preparada muito antes de saber que estava seriamente doente. Quem o rodeava diariamente, percebia-o. “Eu já não estou a fazer isto para mim, mas sim para vocês”, disse algumas vezes nos últimos anos, menciona Lúcia.
“Sentia-se cansado. É a lei da vida. Isto era o grande projecto da sua vida e é natural que o quisesse assegurar com as pessoas próximas.” E Fradique completa: “Esta equipa cresceu e amadureceu em conjunto. De alguma forma é como se ele nos tivesse preparado. A Lúcia foi tendo cada vez mais sensibilidade para a gestão da equipa e eu, o Rui Vargas ou o Dexter sempre tivemos carta-branca para programar.”
No Lux trabalham actualmente 80 pessoas. “Todas com contrato, entre seguranças, DJs, empregados do bar ou de sala, a estrutura do escritório, técnico de som, enfim, isto acaba por ser uma pequena-média empresa”, analisa Lúcia, com “serviço de contabilidade, jurídico, de recursos humanos, de booking e contratação de artistas, com o que tudo isso implica de produção, viagens, hotéis ou questões técnicas.”
Alguns deles, como Lúcia, estão no Lux-Frágil há exactamente 20 anos. “Tinha terminado filosofia, desejava fazer um outro curso na Universidade Católica, que era pago, e achei que tinha de ir trabalhar. Vi um anúncio no jornal, fui a uma entrevista e fiquei. Não tinha qualquer relação com o Manuel e devo ter entrado duas vezes no Frágil, portanto não havia qualquer fascínio.” A história de Fradique é diferente, mas também não conhecia Manuel Reis quando se cruzaram.
“Foi em Janeiro de 1999, o Lux tinha aberto há três meses, e eu que trabalhava na Fnac fui propor fazer lá uma festa com os Três Tristes Tigres, Kid Loco, Aqua Bassino e os Thievery Corporation, então no início, e correu muito bem. No final o Manuel disse-me que aquela noite tinha funcionado como ele imaginava que era possível ali e perguntou-me se conhecia alguém que pudesse replicar aquilo. E eu respondi-lhe que estava disponível, se ele me desse alguns meses. E assim foi.”
Essas relações duradouras eram uma das marcas de Manuel Reis. Não espanta que alguns dos empregados ou DJs do antigo Frágil ainda se mantenham activos no Lux. “Ele conseguiu sempre fazer sentir às pessoas e às suas equipas que estavam a fazer parte de qualquer coisa que era importante e que mexia com a dinâmica da cidade”, diz Fradique. Lúcia sublinha que ele sempre teve uma relação de grande fidelidade, não só com colaboradores, como com os patrocinadores ou empresas. "As pessoas que trabalham aqui defendem de facto isto. Identificam-se.”
Gostava de trabalhar com as mesmas pessoas, mas não abdicava de uma série de princípios. Daí ter fama de não ser fácil negociar com ele quando se tratava de querer fazer acontecimentos no Lux. “Desde o início que ele quis ser auto-suficiente e fazer tudo aqui com as pessoas da sua confiança”, afirma Lúcia, com Fradique a dizer que para Manuel Reis nada se podia sobrepor à identidade do lugar. “Para ele os patrocinadores são parceiros. Nesse sentido a melhor forma de os tratar é implicá-los em algo que só pode acontecer aqui. Se as marcas desejam estar aqui é porque isto tem algo diferente. E se esse algo de diferente se perde, pela sobreposição da marca, não interessa a ninguém. E aí fazemos questão em fazer e controlar tudo: o design, o plano de comunicação ou a produção. Todos os factores essenciais.”
Para a feitura da presente exposição, é a primeira vez que o Lux se associou a uma entidade pública, neste caso a EGEAC. “Também nisso ele tinha imenso pudor, mas havia um património que podia ter interesse público e por uma vez esqueceu a auto-suficiência que era algo de que não abdicava. Mesmo com os parceiros tinha uma relação engraçada. Uma ou outra vez as coisas não correram bem e a tentação era de imediato ir pedir desculpa e devolver o patrocínio, tendo de ser eu a acalmá-lo e a fazer-lhe ver que para a próxima iria correr melhor.”
Todos os espaços do género do Lux carregam consigo a áurea de notoriedade mas também o estigma do elitismo. É natural. Em parte o segredo do seu sucesso é esse. Parecerem exclusivos, quando são antes lugares de diferenças compatíveis. É ilusório imaginar que um espaço com tantas conotações simbólicas gere sentimento de pertença em todos. “Mas isto é uma coisa que o Manuel sempre desejou que fosse absolutamente democrática”, reflecte Lúcia. “E isso é até algo com que continuamos a lutar nos dias de hoje. Cada vez mais as pessoas procuram zonas demarcadas, espaços de elite ou VIP, ou mesas marcadas, e aqui isso é tudo o que não queremos. Teria sido fácil ceder a isso. Tivemos lutas imensas por causa disso. Mas não acontecerá.”
O que vai continuar a acontecer é o Lux. Hoje o espaço continua a ser um marcador de identidades. Mas nada que se pareça com o Frágil. As novas gerações fruem-no de forma despreocupada. Dessacralizaram-no, até certo ponto. São eles que fazem o quotidiano do lugar. Por outro lado, continua a ser frequentado pelas elites culturais ou sociais, que aparecem nas alturas de celebração. E isso vai continuar a ser feito.
“O Lux sempre viveu desses dois movimentos que acabam por se completar”, medita Fradique. “O que o Manuel nos delegou foi isso: não perder de vista o funcionamento regular disto, mas nunca desistir de planear, imaginar, ousar. Esse prazer enorme do fazer.” Ou como resume Lúcia: “Ele não gostava nada de falar do passado. Talvez por isso esta exposição só aconteça agora, vinte anos depois de tudo isto ter começado. É que para ele era sempre para a frente.”