Carlos Reygadas chegou a Veneza para perturbar o cinema no seu paraíso

O cineasta mexicano marca o seu território de forma violenta, poderosa, como um touro, animal de que muito gosta. Nuestro Tiempo, em que um casal se debate com os sentimentos na sua relação aberta, reclama isso para o cinema: a destruição da prosa, a experiência do tempo.

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Nuestro Tiempo: um fantasma de western, sol e toiros DR

Sobre os touros, diz Carlos Reygadas que são animais fora de moda. Hoje “os miúdos preferem golfinhos” ou criaturas “da mitologia”. Os touros são gordos, territoriais, violentos, poderosos. “Eu adoro os touros." O cineasta mexicano filmou 50 horas de touros e de natureza – o digital, com que pela primeira vez trabalhou numa longa-metragem, permitiu-lho – para o seu último filme, Nuestro Tiempo, que acaba com o animal no seu território. O touro “está”, como as árvores e as águas. Como as crianças com que o filme começa: esplêndida sequência de paraíso de sol e de lama, todo o céu e toda a terra dentro do ecrã. Entre esse início – que nos filmes do mexicano não é só um princípio de filme, é o início do mundo, por isso as crianças são as primeiras a experimentar a existência –, e aquele final em que o touro certifica o seu território, há “trouble in paradise” no mundo dos adultos.

Um casal de rancheiros – ele é poeta, é ela que se ocupa da gestão da propriedade – vê a sua relação ser perturbada pela intromissão de um dos cowboys do rancho. Ele é Juan (Carlos Reygadas), ela é Esther (Natalia López, na vida real a mulher de Reygadas). Os dois trabalham a prática de um relacionamento aberto a partir do momento em que Esther se envolve com Phil (Phil Burgers). Para acrescentar ao retrato de família: os filhos do casal de Nuestro Tiempo são os filhos do casal Reygadas na realidade. Mas que isto não sirva, diz o realizador de Batalha no Céu (2005), Luz Silenciosa (2007) e Post Tenebras Lux (Prémio de Melhor Realização em Cannes 2012), para extrapolações biográficas ou divagações sobre a exposição da intimidade. Porque “intimidade”, para ele, não é o corpo, a nudez ou o sexo, isso não lhe custa expor; a intimidade é o que está para além disso. Procuraram actores para os papéis, não os encontraram, acharam que se fossem eles próprios a interpretar as personagens seria uma forma imediata, concreta, de “serem” pais de cinema daquelas crianças – porque seriam sempre os seus filhos a entrar no filme, Reygadas não compra as negociações com os pais de miúdos contratados para serem actores. Nuestro Tiempo é então um fantasma de home movie – e um fantasma de western, sol e toiros. 

Juan e Esther debatem-se entre a nitidez das suas teorias e a neblina dos sentimentos. Dir-se-ia um faits-divers magro, linear e até previsível na sucessão de acontecimentos. Se fosse isso que interessasse. Mas não é, interessam a chuva e a natureza, falam elas pelos acontecimentos. É um filme de Carlos Reygadas. Há três ou quatro momentos de Nuestro Tiempo, na forma como as imagens se associam – é espantoso, parecem ter vida própria... – para nos envolverem no tempo psicológico, emotivo, das personagens, que são a coisa mais livre, mais orgulhosa que se viu por Veneza e que não se vê no cinema “narrativo”. Com essas sequências, em que se estoira com o filme como narrativa a informar o espectador dos acontecimentos – quando a câmara mergulha no rumor da Cidade do México, quando pesquisa o interior da maquinaria de um automóvel ou quando acompanha a fase final de um voo, a aterragem, tudo durante momentos de crise interior das personagens... –, Reygadas amplia a sua condição de cineasta que marca o território de forma violenta, poderosa, marimbando-se para correcções de sintaxe, para uma paradigmática disposição das palavras na frase e das frases no discurso, destruindo a prosa.

Às tantas, e isto vem a propósito, respondendo Reygadas em conferência de imprensa a uma pergunta sobre o título, porque parece a reclamação de um território para o (seu) cinema, o realizador citou Tarkovsky e o esculpir do tempo. Assumiu que não lhe interessa, e lamenta que isso ainda interesse a realizadores de filmes, que se faça cinema a dar informação para orientar o espectador, que se filme para fazer uma história continuar. A literatura faz isso melhor, argumentou, por que é que o cinema fica apenas por aí? E é aí que fica 22 July, de Paul Greengrass (a última produção Netflix em concurso), relatando os acontecimentos de 22 de Julho de 2011, quando o extremista de direita Anders Behring Breivik, num duplo atentado, primeiro com uma bomba em Oslo, e duas horas depois na ilha de Utoya, disparando, disfarçado de polícia, contra um encontro de juventude organizado pelo Partido Trabalhista norueguês: 69 mortos, 110 feridos.

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22 July, de Paul Greengrass: o cinema como antologia dos factos que há a conhecer DR

Greengrass começa o filme com os atentados. Depois segue os seus efeitos nas pessoas envolvidas, como um mosaico informativo, reconstituindo o julgamento e a relação entre Breivik e o seu advogado (também trabalhista, e, como às tantas ele diz, representando tudo o que Breivik quis destruir com os atentados). Mas fá-lo sempre como uma antologia dos factos que há a conhecer. As personagens representam algo no mecanismo, são peças dele, mas precisam de ser opacas, pura informação desumanizada (cruel ironia num filme sobre uma tragédia), para a acção poder avançar.

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