Bem-vindo senhor Wiseman, com o seu silêncio
Dia de muito barulho para nada no Festival de Cinema de Veneza, felizmente chegou o Monrovia, Indiana de Frederick Wiseman
Perguntam-lhe pela pop e ele responde com Musil. Vox Lux, diz o americano Brady Corbet, é o seu O Homem sem Qualidades, na actualidade. No lugar do Império Austro-húngaro, como pano de fundo da ascensão de uma estrela pop, entre os anos de 1999 e 2017, estão os acontecimentos de Columbine e os ataques às Torres Gémeas em Nova Iorque.
Brady Corbet é o actor (em filmes de Greg Araki, Michael Haneke, Antonio Campos ou Sean Durkin…) que em 2015 se estreou na longa-metragem com A Infância de um Líder, filme sobre o Mal a crescer numa criança que se solidificava como ditador. Foi premiado em Veneza, onde foi exibido na secção Horizontes, ou ainda no Lisbon e Estoril Film Festival. Mostrava aí, Brady, o seu gosto pelo tonitruante, pela citação, pelas palavras gordas – com resultados na área do pastiche.
Vox Lux traz isso tudo — traz de novo, por exemplo, a música de Scott Walker, mas há ainda canções de Sia escritas para o filme. Traz uma Natalie Portman que, interpretando uma cantora que na adolescência foi uma vítima de um ataque armado à sua escola, acaba por não se desembaraçar, na interpretação, do simplismo da “monstruosidade” (há por aqui também algo Fausto) e de uma tonalidade geral que quer ligar tudo com gestos grandes mas com definições simplistas.
É a tonalidade do dia em Veneza, modo “o que raio fazem aqui na competição?”. É assim Never Look Away, de Florian Henckel von Donnersmarck (Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, em 2007, por As Vidas dos Outros), uma história da Alemanha da Segunda Guerra à RFA que ainda quer dizer “coisas” sobre a Arte. Não tem a grandiloquência do filme de Brady Corbet mas em compensação arrasta-se como um longo telefilme em que os planos parecem comida cozinhada há muito e guardada no frigorífico – é verdade que há e haverá filmes assim, mas quando se encontra um desses como evitar a zona do espanto?
Acusada, do argentino Gonzalo Tobal, em que uma estudante é acusada de ter assassinado uma amiga (toda a gente, por aqui, a pensar no caso, passado em Itália, Amanda Knox), faz um bocadinho mais, mas não liberta o seu cinema nesse esforço. Quer colocar o consumidor de imagens perante a sua parte de responsabilidade na construção de uma “verdade”. Dolores é culpada ou inocente? O filme não nos mostra, Dolores mantém-se opaca e Acusada reenvia-nos o nosso olhar, o nosso esforço, a nossa construção. Talvez se fosse Haneke… mas chama-se Gonzalo Tobal.
Este agora chama-se Frederick Wiseman. Ainda bem que apareceu, senhor, estava a ser demasiado barulho para nada. Tinham-nos dito – Alberto Barbera, director desta Mostra, ao anunciar a programação desta 75.ª edição em conferência de imprensa – que Monrovia, Indiana (fora de concurso) era o filme em que um realizador americano (de Boston) tinha ido nove semanas para o fim do mundo, uma comunidade rural de 1400 habitantes, procurar uma explicação para Donald Trump.
Devia ter sido evidente que fazer de Frederick Wiseman um cineasta que procura uma explicação para as realidades e as pessoas que filma era ruído que só se justifica pela necessidade de “vender o peixe” com é o caso do anúncio de uma selecção. Ora, há muito silêncio em Monrovia, Indiana, no quotidiano dos campos, da igreja, do bar, do veterinário, ou ainda no ginásio, nos casamentos e nos funerais. Há uma comunidade branca, visivelmente cumpridora dos rituais religiosos, certamente republicana e a sentir-se a milhas do estilo de vida das grandes cidades das costas Leste e Oeste – e estão a milhas dos estilos de vida que se mostram peneirados num festival de cinema, por isso não se conseguem calar, aqui e ali, os risos, é a alteridade em esforço. Não se fala nunca em Trump, mas se calhar Trump tem a ver com essa pastoral americana, com a necessidade de protecção e de reconhecimento, com o sentimento de exclusão. Já Frederick Wiseman tem a ver com a suspensão do julgamento. Bem-vindo, senhor Wiseman!