Juízes e futebol
Por mim, lamento dizer, mas o lugar dos juízes no futebol é só nas bancadas, a apoiar os seus clubes, ou no campo a jogar à bola com os amigos.
Como juiz e cidadão, sempre me incomodou ver juízes nos clubes e organismos de gestão do futebol profissional. Demasiadas vezes, juízes envolvidos nos órgãos de justiça e disciplina viram os seus nomes e função publicamente arrastados na lama da irracionalidade e má-criação, por dirigentes e comentadores desportivos, ou porque o jogador expulso só levou dois jogos de castigo, ou por causa da classificação do árbitro que não marcou a falta. Isso até pode ser bom para o futebol e para as televisões; mas para a Justiça não é de certeza.
Desde os anos 1980, vários juízes integraram os conselhos de justiça e disciplina e os próprios clubes de futebol e apareceram mesmo como candidatos a presidentes. Desconheço a dimensão actual do fenómeno — antes de escrever decidi não ir ver se há juízes na federação ou na Liga para não ficar influenciado. Portanto, peço antecipadamente desculpa se aqui “pisar os calos” a alguém, mas a minha opinião vem de há muito tempo e é sobre a instituição Justiça e não sobre pessoas.
O problema é sério e tem que ver com os princípios constitucionais relativos às incompatibilidades dos juízes, que são instrumentais da percepção social sobre independência e imparcialidade da Justiça.
Em 1993, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) deliberou que os juízes não podiam exercer quaisquer cargos ou funções relacionados com o futebol profissional. Chegou a ser aditada uma norma no Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ) que passaria a proibir o exercício dessas actividades, sem prévia autorização do CSM. Porém, chamado a pronunciar-se sobre esse acrescento ao EMJ, o Tribunal Constitucional considerou-o violador da Constituição. A conclusão não me convence, mas a verdade é que a partir daí ficou claro que o CSM não podia impedir a participação de juízes no futebol. Mesmo assim, em deliberações de 2005, 2006 e 2008, à falta de melhor instrumento legal, o CSM não deixou de vincar o seu desagrado e de desaconselhar essas actuações.
Os juízes partilham as reservas manifestadas pelo seu órgão de gestão. Em 2008 aprovaram um Compromisso Ético, que é muito claro nessa reprovação. A propósito do princípio da integridade profissional, social e pessoal do juiz, lê-se nesse documento: “A participação em actividades cívicas externas às funções do juiz, mesmo que não haja objectivamente risco para a sua imparcialidade, é rejeitada em todos os casos em que seja razoavelmente de prever que implica sujeição a apreciações públicas vexatórias e pouco dignificantes. Será normalmente o caso da participação em órgãos associativos ligados aos desportos profissionais, onde, por via do seu contexto emocional específico e pelo tipo de linguagem utilizada e controvérsias que aí se desenvolvem, facilmente o juiz se sujeita a referências desprestigiantes e é conotado com situações pouco transparentes.”
Em 2010, também o Grupo de Reflexão sobre a Ética Judicial (composto por três juízes, um advogado e uma professora universitária), num estudo sobre a matéria, concluiu que, apesar de não ser legalmente proibido, é totalmente desaconselhável que juízes integrem órgãos de disciplina e de justiça no âmbito dos desportos profissionais.
Apesar deste historial de desconfiança e censura informal, com quase 30 anos, a verdade é que não foi possível evitar a participação de vários juízes nos órgãos do futebol profissional. Trata-se, claro, de uma questão da consciência ética de cada um e não de violação da lei. Contudo, não pode deixar de causar apreensão a persistência de actuações individuais contra o sentimento generalizado dos juízes sobre o que está certo e o que está errado.
Felizmente, parece que esta potencial fonte de quebra de confiança na Justiça tem os dias contados. A proposta de revisão do EMJ, já aprovada na generalidade, contém uma norma que passará a proibir expressamente a participação de juízes nos órgãos estatutários de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, sem prévia autorização do CSM. Muito bem.
Por mim, lamento dizer, mas o lugar dos juízes no futebol é só nas bancadas, a apoiar os seus clubes, ou no campo a jogar à bola com os amigos. Em actividades que não acrescentam prestígio, credibilidade e confiança, é totalmente dispensável.