Abusos sexuais e desculpas. Uma história que se repete na Igreja Católica
Da Irlanda à Pensilvânia, os últimos anos ficaram marcados por escândalos e “atrocidades” (nas palavras do Papa) cometidas por membros da Igreja Católica contra crianças.
O relatório que pôs a nu décadas de abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica nas dioceses da Pensilvânia, nos Estados Unidos, é apenas o último desenvolvimento da já longa lista de “atrocidades” – palavras do Papa Francisco – tornadas públicas nos últimos anos que aumentam cada vez mais a pressão sobre o Vaticano.
Na carta aberta tornada pública nesta segunda-feira, o Sumo Pontífice adopta uma postura inédita, condenando de forma veemente os crimes cometidos e reconhecendo que “nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado”. Esta missiva torna-se especialmente relevante por anteceder uma visita de dois dias à Irlanda, um dos palcos de abusos por membros da Igreja.
Dos abusos em Boston (EUA) ao caso do Chile, todas as histórias parecem seguir um padrão: estala o escândalo, descobrem-se os abusos (e o encobrimento por parte de vários responsáveis religiosos) e pedem-se desculpas. O PÚBLICO elenca os principais casos que têm envolvido membros da Igreja Católica, em vários pontos do globo.
Pensilvânia, EUA. Mais de 300 padres acusados, mais de mil vítimas
Foram sete décadas de abuso sexual, postas a descoberto pela investigação de um grande júri liderado pelo procurador-geral da Pensilvânia, Josh Shapiro, na última terça-feira.
As 1000 páginas de relatório compilam as conclusões de mais de dois anos de investigação e relatam casos de abusos perpetrados por mais de 300 padres contra mais de 1000 vítimas de abuso sexual identificáveis de seis das oito dioceses católicas do estado (Allentown, Erie, Greensburg, Harrisburg, Pittsburgh e Scranton), que a Igreja tentou encobrir. Durante anos, bispos e padres persuadiram as vítimas a não denunciarem os crimes e as autoridades a não os investigarem, revela o documento.
A carta do Papa Francisco parece ter sido directamente motivada pelas revelações deste relatório. No sábado, o responsável pela arquidiocese de Dublin, Diarmuid Martin, pressionava a hierarquia católica: "não basta pedir desculpa”.
Washington. Episódio com 45 anos levou à demissão de antigo arcebispo
As primeiras acusações contra o cardeal norte-americano Theodore McCarrick, 87 anos, ex-arcebispo de Washington, surgiram em 2018, mas remontam a factos que se passaram há 45 anos.
Um homem (agora com 60 anos) denunciou ter sido alvo de abusos sexuais pelo padre quando era criança e uma organização independente que avalia este tipo de acusações concluiu que a acusação contra McCarrick era “credível e substanciada”. Ao relato da primeira vítima, seguiram-se outros homens, que acusavam McCarrick de os ter obrigado a dormir com ele enquanto eram seminaristas.
As revelações sobre o cardeal chocaram a comunidade religiosa de Washington, que olhava para McCarrick como um dos membros do clero mais influentes nos EUA e um dos principais impulsionadores das políticas antipedofilia no seio da Igreja. Como resultado, o cardeal foi suspenso de exercer o ministério e aconselhado pelo Papa a dedicar-se a “uma vida de oração e penitência até que as acusações contra si sejam examinadas num julgamento canónico”. Mais tarde, viria a demitir-se.
Chile. A rede que encobriu Fernando Karadima
As acusações do caso chileno tornaram-se públicas em 2010, mas as primeiras demissões só foram apresentadas ao Vaticano no início de 2018. E todas as peças desta história vão dar a um só nome: Fernando Karadima, condenado em 2011 pela justiça canónica a uma vida de reclusão e penitência por ter abusado sexualmente de pelo menos quatro jovens, todas elas menores à data dos acontecimentos, nos anos 1980, quando era pastor da igreja El Bosque, em Santiago.
Apesar da condenação, os crimes prescreveram sem que o padre tivesse cumprido pena. Ainda assim, foi expulso do sacerdócio.
O caso foi encoberto por uma rede de padres e bispos associados a Karadima durante décadas. Entre eles, Juan Barros, nomeado bispo em Março de 2015 pelo Papa Francisco. Em Janeiro deste ano, durante uma viagem papal ao Chile, insinuou-se que Francisco não conhecia a totalidade da informação sobre o caso e que por isso defendera publicamente o bispo Juan Barros.
Confrontado com as afirmações, Francisco pediu ao arcebispo maltês Charles Scicluna, o mais respeitado investigador em casos de abusos sexuais, que as tornasse claras. E na sequência da investigação, que deu origem a um relatório com mais de 2300 páginas, o Papa Francisco admitiu (mais uma vez) que cometeu “erros graves” ao analisar este escândalo de abusos sexuais, repetindo uma fórmula já conhecida: desculpando-se com “vergonha” e “dor”.
Francisco recebeu as vítimas no Vaticano para lhes pedir desculpa pessoalmente. E até Maio de 2018, os 34 sacerdotes implicados no caso apresentaram as suas demissões – entre eles o do bispo Juan Barros.
Irlanda. Abusos sexuais “endémicos"
Os primeiros desenvolvimentos deste caso deveram-se, mais uma vez, a um relatório: em 270 páginas, a diocese de Ferns, no Condado de Wexford, revela uma investigação interna a vários padres acusados de abusos sexuais e violação, durante a década de 1960. Conclui-se que, apesar das 100 acusações registadas contra 21 padres, nada lhes aconteceu: em 20 anos nenhum deles foi afastado permanentemente da diocese — apenas foram mudando temporariamente de posto ou de diocese, para depois regressar.
Estes primeiros acontecimentos vieram a público em 2005, e, em 2009, surgiram novos relatos de abusos cometidos entre 1930 e 1970, em várias instituições católicas irlandesas para acolhimento de crianças. Juntam-se mais 2500 páginas de relatório às que já existiam e revelam-se casos de abusos físicos e emocionais, causados por castigos arbitrários, disciplina opressiva e, por vezes, fome. Também houve relatos de abusos sexuais — “endémicos” nas instituições para rapazes, lê-se no relatório.
Boston. A investigação jornalística que valeu um Pulitzer
A investigação sobre caso valeu ao diário norte-americano Boston Globe um Pulitzer (o “Óscar” do jornalismo) pela “cobertura corajosa e compreensiva do abuso sexual por parte de padres, num esforço para acabar com o secretismo, provocando a reacção local, nacional e internacional e produzindo mudanças na Igreja Católica Romana”, defendeu o júri em 2003. Em 2015, a investigação serviu de mote a Spotlight, vencedor do Óscar de melhor filme.
Em 2002, a equipa Spotlight (como ficou conhecida), criada na redacção do Boston Globe, virou os holofotes para o escândalo de abuso sexual na paróquia de Boston, encoberto durante décadas, que envolveu o padre John Geoghan, acusado de abusar de dezenas de crianças.
O caso desencadeou uma avalanche de acusações, com centenas de norte-americanos a afirmar terem sido abusados por padres católicos. Em muitos casos, estes padres não foram punidos pela hierarquia, mas apenas transferidos de uma paróquia para outra.
Em 2003, a diocese de Boston anunciou que iria pagar 85 milhões de dólares (mais de 74 milhões de euros) em indemnizações a 552 vítimas de abusos sexuais cometidos por padres católicos ao longo de três décadas.