Decisão histórica: Papa acaba com segredo pontifício para denúncias de abusos sexuais
Papa determina que os processos canónicos conservados nos arquivos das dioceses e da Santa Sé relativos a abusos sexuais cometidos por membros do clero devem ser facultados às autoridades civis.
O Papa anunciou o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores e de adultos vulneráveis cometidos por membros do clero. Numa decisão anunciada no dia em que completou 83 anos, Francisco determina que as denúncias, os testemunhos e os documentos processuais conservados nos arquivos e departamentos da Santa Sé e das dioceses devem ser fornecidos às autoridades judiciais dos respectivos países, sempre que solicitados.
É uma mudança radical na forma como a Igreja Católica vem lidando com estes casos de abusos sexuais de menores, que, porém, e conforme se depreende do “rescrito” assinado pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, não põe em causa a manutenção da “segurança, da integridade e da confidencialidade” destes processos canónicos.
Este documento do Papa apoia práticas em vigor em alguns países, como os Estados Unidos, como a de relatar às autoridades civis suspeitas de abusos sexuais contra menores praticados por membros do clero. Os magistrados passam a ter acesso aos dados dos processos canónicos, conforme explica o jornal italiano La Stampa.
Mas as novidades não se ficam por aqui. Outro documento altera ainda a norma relativa ao crime de pornografia infantil, fazendo com que a posse e a difusão de imagens pornográficas que envolvam menores, até aos 18 anos, passem a ser considerados como um dos crimes mais graves, delicta graviora. Anteriormente, era considerado um delito grave apenas com menores até aos 14 anos. Neste aspecto, conforme reagiu ao PÚBLICO o padre Fernando Calado, “a legislação da Santa Sé passa até a ser mais exigente do que a lei portuguesa”.
A nova instrução, especifica o Vaticano num comunicado online, estabelece ainda que a Igreja fica proibida de impor a obrigação de silêncio a quem denunciar abusos sexuais cometidos por membros do clero, ou disser ter sido vítima deles.
Nos casos relativos a estes crimes mais graves, o papel de “advogado e procurador” também passa a poder ser desempenhado por fiéis leigos com doutoramento em Direito Canónico e não apenas por sacerdotes. “É o reforço do papel do laicado na Igreja e mais um sinal claro do seu empenhamento em combater os abusos e facilitar o andamento dos processos”, interpreta Calado.
“Esta é uma decisão histórica”, afirmou na Rádio Vaticano o arcebispo Charles Scicluna de Malta, o mais experiente investigador de abusos sexuais do Vaticano, citado pela Reuters. “É a demonstração de que o Papa está mesmo decidido a acabar com esta peste que é a pedofilia dentro da Igreja”, reforçou, por seu turno, o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges, para quem estas alterações vêm dar tradução prática ao compromisso assumido por Francisco quando, em Fevereiro, em Roma, no final da cimeira que pôs 190 líderes da Igreja Católica de todo o mundo a debater os abusos sexuais, garantiu que “a Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar qualquer um desses casos” e que tudo fará para entregar à Justiça todos os que praticaram tais crimes.
Dioceses têm mais seis meses para avançar com comissões
Ao PÚBLICO, o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Manuel Barbosa, considerou também que estes dois rescritos “vêm na linha de abertura, transparência e colaboração com as autoridades civis” prometida pelo 266º pontífice. “Esta decisão de abolir o segredo pontifício - e convém não confundir com o segredo da confissão - é de saudar porque é mais um passo no sentido da protecção dos menores e dos mais vulneráveis”, acrescentou.
Pouco após a referida cimeira, e no âmbito da mesma “luta total” contra os abusos, o Papa deu o prazo de um ano para que as dioceses do mundo inteiro criassem comissões específicas para lidar com os casos de abuso sexual. No mesmo decreto, intitulado “Vós Sois a Luz do Mundo”, Francisco estabeleceu ainda a obrigatoriedade de denúncia e um prazo máximo de 90 dias para a investigação de eventuais suspeitas no seio da Igreja. Em Portugal, apenas seis das 21 dioceses tornaram públicas tais comissões. “O prazo termina no dia 1 de Junho de 2020 e creio que, além das seis dioceses que já tornaram públicas estas comissões, o processo segue adiantado e dentro dos prazos nas restantes”, sustentou Manuel Barbosa.
A CEP, por seu turno, conta ver aprovada “antes de Abril”, segundo o seu porta-voz, a actualização das directrizes de 2012 que contêm orientações práticas quanto aos passos a seguir face a eventuais denúncias. “É um processo que está em andamento e as alterações que vierem a ser introduzidas - e que vigorarão como normas - já incluirão estas novas orientações do Papa”, acrescentou Barbosa.
No final da cimeira de Fevereiro, o porta-voz do movimento Ending Clergy Abuse, Peter Isely, mostrara-se defraudado com o resultado do encontro, acusando Francisco de pouco ter ido além da enunciação de princípios. “Há três coisas que não vimos anunciadas: que os padres que abusam sexualmente de menores são removidos do sacerdócio, que os bispos que os encobrem são também afastados das suas funções e que todas as provas dos crimes que estão nos arquivos do Vaticano serão entregues às autoridades civis”, lamentara então em declarações ao PÚBLICO. Com as medidas entretanto tomadas, o Papa vem respondendo a cada uma das reivindicações das vítimas.