Kofi Annan, o homem que ia aos sítios mais sombrios em nome do mundo

Reformou a ONU numa época de mudanças históricas e enfrentou a ira dos EUA quando se opôs à invasão do Iraque. Falhou em momentos cruciais e reconheceu que podia ter feito melhor. Mas nunca se esqueceu da primeira lição: "Temos de ouvir e de olhar à nossa volta"

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Kofi Annan tinha 80 anos LUSA/MATTHEW CAVANAUGH

Era Inverno nos Estados Unidos e Kofi Annan tinha acabado de chegar a Saint Paul, no Minnesota, para estudar na Universidade Macalester com uma bolsa da Fundação Ford. Poucos anos antes, ainda adolescente e a estudar numa escola no Gana, Annan entrara nos radares dos caçadores de futuros líderes graças à sua ascendência aristocrática e ao gosto por organizar protestos – como a vez em que liderou uma greve de fome para garantir melhores refeições na cantina da sua escola.

Esses tempos de rebeldia tinham ficado para trás e agora, aos 21 anos, Kofi Annan tinha outro desafio pela frente: o primeiro Inverno da sua vida. E logo no Minnesota, onde é comum os termómetros perderem apenas para o Alasca no campeonato norte-americano do frio.

E foi esse frio, no Inverno de 1959, que ajudou a moldar a personalidade do homem que viria a sentar-se, muitos anos mais tarde, à mesa de negociações com alguns dos mais brutais ditadores e criminosos durante os dez anos em que liderou a ONU.

"Eu sabia que as estações do ano existiam. Sabia que a neve existia. Sabia que o Inverno existia. Mas nunca os tinha sentido", recordou Kofi Annan numa entrevista ao New York Times em Janeiro de 1997, três dias depois de ter assumido o cargo de secretário-geral da ONU.

Apesar do frio, recusou-se a usar protecções para as orelhas – achava-as "ridículas". "Resisti o mais que pude, até que um dia as minhas orelhas quase ficaram congeladas e fui comprar o maior tapa-orelhas que consegui encontrar. Aprendi uma lição importante. Nunca se deve entrar numa situação a achar que sabemos mais do que os nativos. Temos de ouvir e de olhar à nossa volta. Senão, podemos cometer erros muito graves."

Outra ideia de comunidade

A ideia inicial era regressar ao Gana – já independente do domínio britânico e a precisar de quadros para construir o novo futuro. Mas quando o jovem Kofi Annan chegou a Genebra, em 1962, para trabalhar na Organização Mundial de Saúde, percebeu logo que o seu caminho seria feito longe de casa: "Comecei a perceber que a ideia de comunidade, para mim, iria significar algo diferente do que tinha significado para a geração do meu pai", escreveu Annan no seu livro de memórias publicado em 2012.

Esse compromisso com os outros – com os problemas que ultrapassam fronteiras – fez dele o primeiro africano negro a liderar a ONU e manteve-o no activo até ao dia da sua morte, este sábado, aos 80 anos (a causa da morte não foi divulgada pela família; o comunicado faz apenas referência a uma "doença curta"). Em 2012, numa entrevista ao Guardian, brincou com o facto de ter continuado a trabalhar na resolução de conflitos quando saiu da ONU, no último dia de 2006: "Pensava que a reforma ia ser mais fácil, mas descobri que dá muito trabalho. Devia fazer o que o Mandela diz e reformar-me da reforma."

Kofi Annan deu os primeiros passos na ONU em 1962, na Organização Mundial de Saúde, e à excepção de um par de anos como responsável pelo Turismo do Gana, em meados da década de 1970, passou os 45 anos seguintes na instituição – foi o primeiro funcionário de carreira a ser eleito secretário-geral. Essa dedicação levou o actual secretário-geral, António Guterres, a referir-se a ele como "uma força orientadora para o bem" num comunicado publicado este sábado no site da ONU.

"De muitas formas, Kofi Annan era as Nações Unidas. Subiu no interior da organização para a liderar na entrada de um novo milénio com uma dignidade e uma determinação incomparáveis", disse Guterres.

Motor de mudanças

Grande parte da imagem que Kofi Annan deixa – a de um dos mais importantes secretários-gerais da ONU, a par do sueco Dag  Hammarskjöld – deve-se à forma como liderou uma organização pesada e complexa num mundo em grande mudança na viragem do século.

Quando chegou ao cargo, a 1 de Janeiro de 1997, a União Soviética tinha desaparecido há pouco mais de cinco anos, deixando para trás um mundo em que as intervenções externas eram uma área dominada por duas grandes potências; quando saiu da ONU, o mundo tinha sido redefinido por acontecimentos como a guerra da ex-Jugoslávia, os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 e as invasões do Afeganistão e do Iraque.

Para além de ter lançado um ambicioso programa para reformar a ONU, Annan destacou-se como secretário-geral por defender a ideia de que a opressão de um povo pelo seu Governo é também uma ameaça à estabilidade dos outros países – o princípio da "responsabilidade de proteger", adoptado em 2005, que redefiniu a ideia de intervenção humanitária.

Falhas e acusações

Mas essa capacidade de liderança, que tantos salientam nas mensagens de pesar pela sua morte, foi posta à prova algumas vezes antes e durante o mandato de secretário-geral.

Em 1994 e 1995, enquanto responsável pelas operações de manutenção de paz da ONU, Annan foi acusado de não ter feito tudo o que estava ao seu alcance para impedir o genocídio no Ruanda e o massacre de Srebrenica – em ambos os casos, Annan foi acusado de não ter reforçado as forças de manutenção de paz apesar dos apelos dos comandantes no terreno.

Anos mais tarde, em 2004, viria a lamentar algumas das decisões que tomou, principalmente nos meses que antecederam o genocídio no Ruanda.

"Na altura acreditei que estava a fazer o melhor possível. Mas depois do genocídio percebi que podia e devia ter feito mais para fazer soar o alarme e reunir apoio", disse Annan.

Uma admissão de culpa que sempre fez questão de ligar à forma como a ONU foi concebida, e que explicou em entrevista ao Guardian, há seis anos: "Quando os Estados-membros e os governos estão confrontados com um problema sem solução, e se vêem pressionados para fazer alguma coisa, essa coisa acaba sempre por ir parar à ONU. O Conselho de Segurança trata do problema e esses países podem ficar descansados. Depois recebemos um mandato para actuar, mas não recebemos os meios para resolver o problema e acabamos por enfrentar dificuldades e falhar. A seguir somos apontados como culpados. Um dos meus antecessores costumava dizer que as letras SG [secretário-geral] significavam scapegoat [bode expiatório]."

Já como responsável máximo da ONU, Kofi Annan viu-se debaixo de um ataque cerrado dos EUA, que tinham apoiado a sua eleição em 1997, na Administração Clinton, mas que passaram a considerá-lo como um inimigo devido à sua posição contra a invasão do Iraque.

Segundo Annan, foi essa oposição à invasão do Iraque – que considerou "ilegal", provocando a fúria da Administração Bush – que o arrastou para o escândalo de corrupção no programa Petróleo por Alimentos, em 2005. Nessa altura, Annan foi acusado de ter beneficiado do programa que permitira ao Iraque, na década de 1990 e então debaixo de sanções, vender parte das suas reservas de petróleo em troca de alimentos. O relatório final viria a absolvê-lo, mas Annan não escapou às críticas duras de congressistas do Partido Republicano, que o acusaram de falta de liderança e conflito de interesses e pediram a sua demissão.

Trabalho até ao fim

Conhecido por se aborrecer rapidamente quando não estava no meio das discussões sobre resolução de conflitos e processos de paz, Annan tentou afastar-se desse mundo. Mas o apelo de uma vida a ouvir e a olhar à sua volta – aquilo que aprendeu a fazer aos 21 anos, quando chegou aos EUA para estudar – foi sempre mais forte. Em 2007, criou a Fundação Kofi Annan; depois, mediou com sucesso o processo de paz no Quénia e tentou aproximar os inimigos na brutal guerra na Síria, sem sucesso; e foi até ao fim da vida presidente do grupo The Elders, fundado por Nelson Mandela.

Em 2001, Annan e a ONU foram distinguidos com o Prémio Nobel da Paz. A justificação do comité, ainda que escrita a meio do mandato do então secretário-geral, já destacava todos os méritos que iriam fazer dele uma das figuras mais importantes nos 73 anos de história da organização: "Ao mesmo tempo que sublinhou com clareza a responsabilidade da ONU na paz e segurança, também salientou as suas obrigações com respeito aos direitos humanos. Esteve à altura de novos desafios como o HIV/SIDA e o terrorismo internacional, e proporcionou uma utilização mais eficiente dos recursos modestos da ONU."

O carisma pessoal era um trunfo importante, mas isso não explicava tudo – era apenas "uma parte da história", como disse o escritor e político canadiano Michael Ignatieff numa crítica ao livro de memórias de Annan, publicado em 2012. "Para além do seu charme, que tem em abundância, há uma autoridade que surge com a experiência. Poucas pessoas passaram tanto tempo a negociar com criminosos, senhores da guerra e ditadores. Ele tornou-se no enviado do mundo ao lado negro."

A quem o questionava sobre o segredo para uma vida de negociações com ditadores brutais e líderes de exércitos de assassinos, respondia sempre com uma palavra: dignidade.

"A dignidade é muito importante. Tudo se resume à dignidade", disse na entrevista ao Guardian em 2012. "Quando estamos na presença de pessoas com um grande ego, temos de lhes perguntar: 'Que legado vai deixar?' Isso é importante, porque essas pessoas têm uma certa imagem delas próprias e admitem fazer coisas incríveis para se protegerem. Faço-lhes ver o que representam as suas acções e digo-lhes de que forma elas são vistas pelo mundo exterior."

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