Quem, nestes dias, nestas últimas semanas, ou até nos últimos meses, viajou de avião, de uma cidade qualquer para outra cidade qualquer, passou muito provavelmente pela experiência de viver o caos na terra e o inferno nos céus. O acidente, escreveu uma vez um urbanista, é a face escondida do progresso. Não há hoje nenhum lugar onde o acidente seja tão visível como nos aeroportos, que são plataformas logísticas que funcionam como os centros das cidades.
O acidente consiste desde logo na indistinção entre quem chega e quem parte. Dantes as duas categorias eram bem distintas, não só porque cumpriam rituais diferentes, mas também porque os que partiam não tinham a mesma cara, a mesma deixis corporal, daqueles que chegavam. Ora, hoje são todos iguais porque, em rigor, os aeroportos são o lugar da chegada generalizada. Toda a gente, independentemente de estar à espera de partir pelos ares ou de ser posto finalmente em terra, tem aquela mesma cara de quem chega ao aeroporto, isto é, ao lugar do grande fechamento, como foram – ou são – as prisões e os asilos. Mas esse é apenas o primeiro estádio do acidente. O acidente numa fase mais avançada é quando, uma vez transpostos todos os obstáculos e barreiras, começa a espera. Pode durar horas e nós nunca sabermos porquê. Mesmo quando tudo decorre normalmente, acedemos sem atribulações ao lugar reservado e são cumpridos os horários, a sensação de que atravessámos um campo de batalha e de que ali se trava a mais actual forma de guerra deixa-nos antecipadamente com medo da próxima chegada ao aeroporto. Há aeroportos por essa Europa fora que por estes dias foram considerados lugares de perigo, a evitar. Não é apenas o aeroporto de Lisboa que está superlotado, o céu está superlotado de aviões e o mundo está superlotado de viagens. Tal como no final do século passado se falou muito do fim da história, é agora o tempo de perceber que chegou o fim da geografia. Andávamos todos nós tão contentes com os voos low cost, e antes disso com a velocidade que modificou as condições da viagem e do percurso. Sabemos agora que alguém, ou alguma coisa, desatou a rir-se de nós, fazendo-nos experimentar a situação paradoxal de ficarmos imobilizados por causa do excesso de mobilidade. A situação já era nossa conhecida nas entradas e saídas das grandes cidades. Mas agora todas as ligações aéreas de umas cidades às outras conhecem esse regime do trânsito parado. Este mundo que tende para a sua perda, isto é, para a entropia, é um mundo irónico que transforma toda a promessa de felicidade (temporária, é certo) num inferno e deixa toda a gente parada – por muito mais tempo do que aquele que conseguimos suportar – exactamente porque foi prometida a toda a gente a fácil mobilidade e a velocidade. Nunca o fenómeno da entropia foi tão espectacular como é hoje nos aeroportos e no tráfego aéreo. Talvez seja necessário ter em conta que há uma economia política da velocidade e não apenas da riqueza produzida. E quando somos submetidos nos aeroportos e nos aviões à condição de plebe desprezível, pensamos que ali pode estar a renascer uma nova modalidade de luta de classes: por onde circulam os ricos nos aeroportos? Em que aviões viajam para não correrem o risco de perder tempo? Porque é que a velha máxima do “tempo é dinheiro” continua a ser tão actual que ou se tem as duas coisas – tempo e dinheiro - ou não se tem nenhuma. Tempo low cost? Bela promessa. A situação de “desastre” nos aeroportos diz-nos que, neste domínio, são muito frágeis as conquistas e poderosos os retrocessos.