Corrosão nas parcerias público-privadas
Muitas das parcerias público-privadas em Portugal foram primeiro negociadas e depois renegociadas em situação altamente desfavorável para o Estado.
As últimas semanas têm sido pródigas em notícias e debates sobre as acusações de corrupção pendentes sobre inúmeros antigos governantes. Recentemente, e num artigo neste jornal em 4 de Maio último, Rui Tavares chamou a atenção para uma distinção nestas matérias que me parece fundamental e que é largamente negligenciada. Trata-se da distinção entre corrupção e corrosão. De facto, não basta preocuparmo-nos com as acções dos nossos governantes que são legalmente inaceitáveis; em democracia também temos de estar atentos àqueles comportamentos corrosivos que, ainda que sejam legais e não sejam passíveis de serem considerados corrupção, são sem qualquer sombra de dúvida muito lesivos ao bom funcionamento de um Estado de direito.
Também neste contexto, apareceram notícias sobre inquéritos judiciais a possíveis práticas de corrupção nas negociações e renegociações das parcerias público-privadas (PPP). Aqui também, a distinção entre corrosão e corrupção é algo incontornável e que, por isso, não podemos negligenciar.
Conceptualmente, as PPP são um mecanismo de financiamento de infra-estruturas públicas com enorme potencial, já que usam a eficiência e os incentivos do sector privado na concepção, produção, manutenção e gestão de tais infra-estruturas. O sector privado financia e executa os projectos e o Estado compensa-o durante o período da concessão, com base no uso da infra-estrutura pela população. Potencialmente, todos saem a ganhar com uma parceria deste tipo. Sublinhe-se a palavra potencialmente. O Estado beneficia em poder disponibilizar aos cidadãos infra-estruturas ao mais baixo custo e em tempo útil, infra-estruturas essas que de outro modo poderiam não ser construídas. O sector privado empresarial beneficia também pelas oportunidades de negócio que as PPP oferecem e que se traduzem nos pagamentos do Estado durante o período de concessão. Por fim, os cidadãos também beneficiam ao terem à sua disposição e com uma menor carga fiscal, pelo menos no presente, uma infra-estrutura que de outro modo não teriam.
Frisei que, potencialmente, todos saem a ganhar com uma PPP. Potencialmente, porque há contudo uma condição fundamental para que de facto todos beneficiem destas parcerias. Muito simplesmente, as negociações e posteriores renegociações entre o parceiro público e os parceiros privados têm de ser feitas num contexto equilibrado. Equilibrado no geral, e muito em particular na gestão e partilha dos múltiplos riscos envolvidos no projecto. Todos os projectos de investimento – e as PPP não são excepção – envolvem riscos, que por sua vez afectam a sua rentabilidade efectiva, por contraste com a sua rentabilidade esperada. Ao assumir a parceria, por exemplo, para todo o período da concessão, esperam-se determinados custos de produção e de manutenção, assim como haverá uma expectativa sobre a utilização esperada das infra-estruturas por parte da população, e ainda uma expectativa sobre a evolução do enquadramento legal deste tipo de investimento. A questão-chave é a de saber quem assume o risco de as coisas correrem menos favoravelmente em cada uma destas áreas. Quem fica a perder com surpresas menos agradáveis?
Numa situação desejável em que se trata de estabelecer parcerias para desenvolver projectos que são económica e financeiramente viáveis, esperar-se-ia uma partilha equilibrada do risco. Por exemplo, faz sentido que o sector público fique responsável por dificuldades inesperadas em termos de expropriações. Faz sentido que o sector privado fique responsável por riscos de produção, de operação e ainda manutenção, e até mesmo pelos riscos financeiros. Faz sentido uma partilha equilibrada dos riscos derivados de surpresas desagradáveis na futura utilização da infra-estrutura pela população, uma vez que tipicamente a compensação aos agentes privados durante a concessão dela depende.
Mas o que acontece se, ao invés de uma negociação equilibrada entre dois parceiros com iguais interesses num projecto económica e financeiramente viável, estivermos a falar de negociações de projectos sem qualquer viabilidade? Projectos para os quais, dadas as expectativas de utilização futura das infra-estruturas, está claro para todos – parceiros público e privado – que nunca vai ser possível gerar receitas suficientes para suportar uma compensação equilibrada aos privados? Projectos que o sector público está muito interessado em concretizar, meramente por razões políticas, e que por isso o sector privado nunca teria a iniciativa de os implementar dado não serem economicamente viáveis? No contexto de negociações desta natureza, quem vai acabar por assumir a maioria ou mesmo todos os riscos? A resposta parece-me óbvia. Vai ser o Estado. Porque é o Estado que quer concretizar determinado projecto – que a menos de enormes garantias sobre a cobertura destes riscos para garantir a sua rentabilidade, o sector privado não terá o menor interesse em fazer.
E aqui chegamos ao ponto central desta coluna. Muitas das parcerias público-privadas em Portugal foram primeiro negociadas e depois renegociadas em situação altamente desfavorável para o Estado. Trataram-se em muitos casos de projectos de infra-estruturas que não eram viáveis logo à partida e que apenas assumiram um verniz de respeitabilidade através de projecções de utilização – por exemplo, projecções de tráfego – feitas de modo muito leviano, se não mesmo de modo deliberadamente incorrecto.
A consequência foi, inicialmente, o estabelecimento de muitas parcerias com altas rendas para os privados, acompanhados naturalmente de altos riscos para o sector público. A consequência foi, posteriormente, renegociações de contratos que em muitos casos apenas trouxeram a aparência de benefícios para o sector público e que acabaram na realidade por sobrecarregar em muito o erário público no futuro – pagamentos pela disponibilidade da infra-estrutura, em vez de ser em função do seu uso, e eliminação de obrigações contratuais relacionadas com a manutenção dos equipamentos, só para mencionar dois aspectos.
Já há muito tempo que defendo a ideia de que não se deve marginalizar o mecanismo financeiro das parcerias público-privadas. São mecanismos controversos dadas as realidades da sua aplicação no nosso país, mas são também mecanismos incontornáveis, dadas as suas enormes potencialidades e o seu crescente uso em todo o mundo. Mas a parte fundamental do processo de evitar a sua marginalização é reconhecer os erros do passado; é reconhecer claramente que a sua génese em Portugal está inquinada por uma enorme teia de corrosão. Não sei se também foi uma teia de corrupção – isso fica para as instâncias próprias investigarem e os tribunais decidirem. Mas que foi corrosão, lá isso penso que foi. E para mim, enquanto economista, contribuinte e cidadão crente nos valores republicanos e democráticos, esse tem de ser também um critério relevante, para além da corrupção, obviamente.
Queremos mais parcerias público-privadas em Portugal? Sim, mas. Mas acima de qualquer suspeita de corrosão e muito menos de corrupção. Enquanto tal não for possível, então o melhor é mesmo marginalizá-las temporariamente, no interesse não só do Estado de direito, como também da eficiência económica e da equidade. Os portugueses agradecem.