Corremos o risco de “parar todas as fábricas” e a Terra “continuar a aquecer”

Ainda vamos a tempo de travar o aquecimento global? Ou teremos de nos adaptar a um planeta cada vez mais quente? Um estudo mostra por que estamos muito perto de ultrapassar um ponto de não retorno.

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Os glaciares na Argentina estão em risco de desaparecer por causa das alterações climáticas Enrique Marcarian/Reuters

Desde 1980, a temperatura média da Terra subiu cerca de um grau Celsius por causa do aumento da concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, lançado na queima de combustíveis fósseis. O Acordo de Paris de 2015 foi a mais recente tentativa de travar esta escalada. Os países que ratificarem o acordo comprometem-se a reduzir as emissões de CO2 a partir de 2020 para que o aquecimento global não atinja os dois graus e, preferencialmente, se mantenha abaixo dos 1,5 graus.

A esperança é que assim se impeça os piores cenários, em que a temperatura média suba cinco ou seis graus e a Terra se torne uma verdadeira estufa, com desertos e savanas em vez de florestas, fenómenos meteorológicos extremos, e um nível médio do mar que faria desaparecer muitas regiões costeiras, incluindo a zona ribeirinha de Lisboa. Mas há um risco de que os dois graus já não cheguem para evitar esse cenário catastrófico, revela um estudo publicado esta segunda-feira na revista científica PNAS.

Esse risco está ligado à complexidade de vários sistemas terrestres que se influenciam entre si e têm impacto nas alterações climáticas como as calotas polares, as correntes oceânicas, o solo gelado das regiões boreais (permafrost), as florestas e a respiração das bactérias. Para já, estes sistemas ajudam a travar o aquecimento global, mas o aumento da temperatura da Terra acabará por inverter essa função.

“O nosso artigo é a primeira tentativa de resumir o risco dos sistemas da Terra ultrapassarem um ponto de não retorno”, explica ao PÚBLICO Johan Rockström, director-executivo do Centro de Resiliência de Estocolmo e um dos vários autores do artigo, que é assinado também por Will Steffen, que pertence ao mesmo centro e à Universidade Nacional Australiana, e por Katherine Richardson, do Centro de Ciência Sustentável da Universidade de Copenhaga. “Ou seja, mostra o risco de perdermos a resiliência da Terra, e de ela passar de um mitigador do aquecimento global, como acontece actualmente, para um agente activo do aquecimento global. Há cada vez mais dados científicos que mostram que se atingirmos um aumento de dois graus da temperatura média da Terra podemos ter atravessado esse ponto de não retorno. Mais cedo do que tínhamos pensado.”

O CO2 tem a capacidade de absorver a energia irradiada da superfície terrestre, que por sua vez recebe o calor do Sol. Quanto mais CO2 existe na atmosfera, mais calor é retido, provocando o efeito de estufa. Há outros gases que também retêm calor, como o metano, mas a quantidade de CO2 que existe e que é emitido para a atmosfera, e o tempo de vida de cada molécula de CO2 no ar, faz deste o mais importante gás neste processo.

Desde a década de 1980, quando a expressão “efeito de estufa” ficou conhecida, que os líderes dos países têm vindo a adiar uma política efectiva para travar a nível mundial as emissões de CO2. O resultado não poderia ter sido outro: entre o final daquela década e 2018, a concentração do CO2 na atmosfera subiu de 350 para mais de 400 partes por milhão (ppm).

Poderia pensar-se que, parando já as emissões de CO2, o aumento da temperatura seria travado. Mas o artigo desconstrói esta ideia explicando que a realidade é mais complexa. O aumento da temperatura tem consequências, uma das mais imediatas é o derretimento do gelo no Pólo Norte. Esse derretimento faz com que haja mais luz a atingir o oceano, aquecendo ainda mais aquela região do globo. Por outro lado, este processo pode fazer desacelerar a corrente oceânica do Atlântico que leva a água aquecida nos trópicos para o Norte. E estima-se que esta desaceleração da corrente tenha impacto até na Antárctica, já que se armazenaria aí mais água quente, o que iria acelerar o derretimento do seu gelo.

Aquele é apenas um exemplo das ligações que os processos têm entre si e do encadeamento dos fenómenos. O problema é que a partir de uma certa temperatura, um dado processo deixa de ser reversível. Hoje, é possível que já não se consiga impedir o desaparecimento do gelo da Gronelândia, que, uma vez derretido, aumentará o nível médio do mar em sete metros de altura.

No artigo, os autores definiram quando um processo deixa de ser reversível de acordo com o aumento de temperatura. Tal como o derretimento da Gronelândia, estima-se que o branqueamento dos corais dos trópicos e o derretimento do gelo da região Oeste da Antárctica sejam irreversíveis se a temperatura aumentar entre um e três graus. Já o desaparecimento da floresta amazónica poderá acontecer quando a temperatura subir entre três e cinco graus. Acima dos cinco graus, os solos gelados do Norte da Europa e da América do Norte vão derreter-se e todo o material biológico conservado vai apodrecer, libertando toneladas de CO2 e metano.

O grande receio é que, mesmo que se consiga travar as emissões nos dois graus, alguns daqueles fenómenos já não sejam reversíveis e façam aumentar a temperatura, desencadeando um efeito dominó. A única forma de tentar impedir isso é “descarbonizar imediatamente o sistema mundial de energia, e alcançarmos um mundo livre de combustíveis fósseis o mais tardar em 2040-2050”, diz-nos Johan Rockström.

Se falharmos, a humanidade será testemunha de um processo de séculos que tornará a Terra numa estufa. “Iríamos com certeza tentar adaptar-nos à viagem da Terra a transformar-se numa estufa, mas seria provavelmente um mundo muito diferente – sem pessoas a viver nos trópicos, com uma concentração de pessoas no Árctico e na Antárctica, com formas completamente diferentes de gerar alimento, com escassez de água e uma normalização dos fenómenos extremos”, resume o cientista.

“Acho muito difícil conseguirmos limitar [os efeitos do aquecimento global], é preciso uma descarbonização da sociedade que não vejo acontecer nas próximas duas décadas”, diz, por sua vez, o climatologista Ricardo Trigo, investigador na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que não fez parte do artigo, mas que o elogia: “Está muito bem esgalhado, sumariza uma data de informação que já se conhecia mas que não estava arrumada de uma forma tão explícita.”

O cientista português diz estar mais pessimista com a situação da Terra hoje do que no passado e acredita que o calor intenso dos últimos dias é mais um sintoma das alterações climáticas, tal como se comprovou com a onda de calor de Junho de 2017, responsável pelo incêndio de Pedrógão Grande. “Foi a onda de calor mais intensa em Junho no Sul da Europa”, lembra, adiantando que o preocupante é ver que os efeitos das alterações climáticas surgiram muito mais cedo do que se esperava. E resume o teor do artigo da PNAS numa frase: “Podemos parar todas as fábricas e isto continuar a aquecer.”

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