Brooklyn, o bairro onde vivem pessoas reais
Não é a segunda Manhattan. Brooklyn é Brooklyn, com vida própria, um skyline recém-semeado, uma marginal resplandescente, street art com entranhas e vizinhos que se cumprimentam no alpendre. Do lado de cá do rio, neste oásis que parece um bairro gigante, o passo abranda e o sotaque torna-se mais espesso.
“Não interessa de onde és, estamos contentes por seres nosso vizinho.” Escrita em três línguas (espanhol, inglês e árabe), a mensagem está afixada à porta daquela que será a nossa casa durante os próximos dias, “a primeira casa de contentores de navio de Nova Iorque”, anuncia o Airbnb. Não há um welcome literal, mas há um letreiro “Trump is a poopy head” e um babygrow com a inscrição “families belong together” pendurado como um espantalho num dos muitos canteiros que povoam a rua Keap. Mal chegamos e já nos sentimos à vontade com David, um nova-iorquino com raízes em Lower East Side e que há cerca de 20 anos trocou Manhattan por Brooklyn — porque o lado de cá passou a ser mais viável do que o lado de lá.
“Há meio século que não havia nada nesta parcela”, explicaria mais tarde o nosso anfitrião, uma espécie de capitão Nemo, crítico relativamente ao rumo dos acontecimentos, preocupado com aqueles que considera oprimidos, sentado com o seu cão gigante Mormon (já foi Norman, mas um amigo da casa não queria ter o mesmo nome que o cão) ao comando do seu “submarino”, uma estrutura composta por seis contentores de navio encaixados em três andares que também representa a evolução de Nova Iorque nas últimas décadas e os movimentos migratórios dentro dos seus limites. “A minha falecida esposa era professora de Arquitectura e sempre quis fazer um projecto de um edifício que fosse barato e sustentável. Há arquitectos que sonham em construir um edifício rococó, uma mansão ou um arranha-céus. Ela queria uma casa de futuro para as pessoas. É isto que a casa é.” Aqui não há “soldagens chiques” ou uma “construção extraordinária”. “A casa foi desenhada para ser replicável e os sistemas estão à vista para a estrutura ser usada como uma ferramenta de ensino. Há muitas escolas que nos visitam”, explica David, que aprendeu a ser empreiteiro por força de anos e anos de squatter (ocupa) no lado de lá. Aprendeu carpintaria, aprendeu a ser electricista, criou jardins comunitários em Lower East Side com os amigos e evoluiu para “um, dois, três, quatro... seis edifícios”. “Percebi que se conseguia ocupar terra também podia tomar edifícios. Ninguém parecia estar a prestar atenção. Depois vivemos uma pequena revolução e fomos expulsos pela polícia, armada de tanques.”
A evacuação foi inevitável. Numa página de Williamsburg Shorts, livro de ilustração de Lucio Zago (com fotos de Anders Goldfarb), as pessoas fogem em debandada perseguidos por robots da Guerra dos Mundos de H. G. Wells. “Nos anos 90 a ambição desmedida dos políticos fez da vida dos artistas de East Village um inferno.” Nas páginas seguintes, como no Livro do Êxodo, apartam-se as águas do East River. “Os nossos pais pensaram reconstruir as suas vidas, ou criar novas, e descobriram um oásis de oportunidades do outro lado do rio, cheio de armazéns vazios e de rendas baratas.”
Brooklyn de portas abertas
Lucio é um exemplo perfeito. Viveu 23 anos na agitada intersecção Grand/Lorimer e assistiu à transformação de uma comunidade da classe trabalhadora para uma das vizinhanças mais na moda do mundo — mudou-se recentemente para um apartamento seis quarteirões a sul por estar a ser perseguido pelos arranha-céus e pela especulação imobiliária que também cruzaram o rio. “De minha casa via o skyline de Manhattan e aos poucos passei a ter vista para as traseiras do skyline de Williamsburg”, confessa o ilustrador, para quem Williamsburg chegou a ser uma zona industrial e desolada. Hoje é uma marginal resplandescente, cheia de arranha-céus de vidro, de condomínios fechados, de galerias e estúdios da moda, de paredes imensas grafitadas por encomenda (de marcas multinacionais) e de hotéis com fila a meio da tarde para tomar um drink no terraço com vista para a ilha de Manhattan (William Vale é um deles).
A 11 de Maio de 2005, a cidade de Nova Iorque aprovou (49 votos a favor, um contra) o plano de renovação da beira-mar Greenpoint-Williamsburg que abrangia 175 novos quarteirões ao longo de 350 hectares. Brooklyn estava de portas abertas.
“Os táxis amarelos fugiam de Brooklyn como o diabo da cruz”, desenha Lucio. Vagaroso, Joey, vizinho de David, fala de uma “segunda Manhattan” onde “já não há tiros e gangues como nos anos 1980”. “A segurança mudou. Se os judeus vão é porque é seguro”, diz. Os judeus ultra-ortodoxos estabeleceram-se a sul da linha de comboio, no enfiamento da também ciclável Ponte de Williamsburg, os hipsters ficaram com a zona a norte da avenida Broadway — amor à primeira vista —, mais os porto-riquenhos, os italianos, os dominicanos e todos que chamam casa a Williamsburg. Morar em Brooklyn, resume Joey, “é conveniente”. “Essa é a chave”. Ainda é.
Duas formas de visitar
Para David, a cena repete-se. “Nova Iorque”, recorda, “só se desenvolveu quando recebeu os carris”. “Em Brooklyn há bairros que vão desenvolver-se lentamente porque não têm acesso a transportes públicos. Os que se desenvolvem primeiro, e que são mais caros, têm transportes públicos.” Essa espécie de inflação de proximidade parece só não afectar a Broadway, avenida de ferro “vacinada” pelo barulho do comboio que a “sobrevoa” ao longo de quase sete quilómetros. “Essa avenida está cheia de vida porque se poupa muito dinheiro quando escolhemos viver em sítios barulhentos, da mesma forma que é mais barato viver perto do aeroporto.” A mudança, sustenta Emma, durante um copo no Norman, restaurante do espaço A/D/O, “está a acontecer num abrir e fechar de olhos, estação de metro em estação de metro”. “Não acontece no Harlem, que faz parte de Manhattan”, completa a directora geral da Pulse, a trabalhar com hubs criativos na zona de Williamsburg. “Ninguém vive aqui por acaso. As pessoas estão aqui porque querem fazer algo especial. E querem ser os melhores no que fazem.
Há duas formas de visitar Brooklyn. Explorar Manhattan e dar um pulinho a Brooklyn — porque até tem as melhores vistas sobre Manhattan — ou ficar em Brooklyn, explorar o seu miolo e, se houver tempo, ver as atracções de Manhattan. A primeira fórmula inclui obrigatoriamente a concorrida travessia da ponte de Manhattan e um passeio prolongado pelo DUMBO (Down Under Manhattan Bridge Overpass) e a sua prazerosa promenade, uma antiga área fabril hoje repleta de jardins em socalcos, galerias de arte e apartamentos de luxo com vista de luxo, silêncio e tranquilidade (algo que em Manhattan custa ouro) e com transportes à mão de semear para chegar à ilha principal em 15 minutos. Os cinéfilos (e os instagramers) encontrarão por aqui, mais precisamente na rua Washington, de frente para a Ponte de Manhattan, a foto de capa de Era Uma Vez na América, último filme realizado por Sergio Leone (protagonizado por Robert De Niro “Noodles”) e que conta a história de um grupo de amigos de ascendência judaica que crescem entre gangues nas ruas de Lower East Side. A caminhar bem, Williamsburg fica a uma hora de distância. O sábado pode ser o dia perfeito para começar a descobrir os vícios de Brooklyn, para tentar perceber a ordem das peças. Sabbath e trajes a rigor do lado sul da Broadway (fotos não recomendáveis), enquanto a norte, na zona de acção dos criativos da cidade, as mil e uma receitas do mercado Smorgasburg, as tendências entre as avenidas Bedford e Manhattan e talvez um bom brunch antes do merecido descanso num dos dois parques das imediações (o East River ou o McCarren, onde o basebol amador é rei).
O segundo plano de ataque diz-nos que Brooklyn é feito de bairros residenciais, onde vivem pessoas reais. Não que não vivam pessoas reais em Manhattan, mas mal atravessamos o rio para o lado de cá sentimos que o dresscode se torna mais casual, que o passo abranda, que o sotaque se torna mais espesso, o céu mais alto e espaçoso. Deste lado, o boom está a acontecer precisamente pela ligação umbilical de Brooklyn com Manhattan. Mas o encanto de Brooklyn é o facto de ter uma atmosfera relaxada, ligeiramente provinciana, seguramente e sempre multicultural.
Sugestão: sair de casa e perguntar à primeira pessoa do bairro — pode ser ao vagaroso Joey, cão ao colo — que caminho seguir. Ir a pé. Só assim teremos acesso às pessoas reais e às pistas que elas nos deixam, como migalhas num conto infantil. O miolo de Brooklyn, de Greenpoint a East Williamsburg, de Newtown Creek a Bushwick (também já encontrámos migalhas em Ridgewood), está cheio de pequenos grandes projectos que vamos querer espreitar (tropeçámos logo no café japonês Brooklyn Ball Factory, na avenida Montrose, 95), de arte de rua pura que se confunde com a vida dura das ruas (ainda sem as mil e uma visitas guiadas dos locais mais turísticos), de carros clássicos escondidos com os pára-choques de fora, de pequenos gavetos que aos poucos se transformaram em hortas e jardins comunitários (são como “salas de ensaio para a democracia”, avisa-nos David; “as crianças aprendem o que é uma reunião, aprendem a conversar, a discutir temas e a falar cada um na sua vez”), de vias terrestres parcialmente cobertas por vias férreas onde os carros ligam os médios a meio da tarde. Tudo envolvido numa espécie de banda sonora, uma vibrante mistura entre a cadência dos comboios que nos “sobrevoam” (“stand clear of the closing door, please”), os carros de janela aberta a debitarem hip-hop e as biclas artilhadas de modernas colunas de som — com a mesma potência dos tradicionais boombox ou ghettoblaster.
A beleza pode empurrar a sujidade
No número 168 da Avenida Johnson, Troy (natural da Califórnia, a viver em Brooklyn há 20 anos), um dos fundadores da Human Head Records, recorda um ambiente pesado. “Muita droga, muito crime, muita festa também, nada de polícia”, descreve sentado ao lado de um gira-discos e da pacata Penny, uma galga habituada a ouvir os milhares de discos que circulam pelas caixas e arquivos da loja (inclusive discursos de Martin Luther King a cinco dólares). A um quarteirão de distância, no Cup, ao lado da estação de metro Montrose Avenue, John (Colorado) serve-nos um café expresso brasileiro de torra local (Plowshares), “Há dez anos era perigoso. A coolness começou junto à água e alastrou”, recorda, antes de apontar no mapa um alfarrabista indispensável (outro é o Book Thug Nation). “O estranho é que há dez anos Williamsburg orgulhava-se de não ter cadeias internacionais, apenas lojas independentes”, sublinha Josh, atrás do balcão da atafulhada Human Relations (no número 1067 da Avenida Flushing está o letreiro em português “vende e compra livros em espanhol, francês, português e tudo mais...”). “Esse sonho foi abandonado. Não se pode controlar. Só em Brooklyn vivem 3,5 milhões de pessoas. A mudança é inevitável. Vivemos num limbo em que, por exemplo, as marcas se apropriam da street art. Nas últimas dez décadas, as pessoas iam presas por isso.” Do lado de cá, ainda há quem ocupe e se instale. Sinta-se em casa. “Este lote estava desocupado nos anos 1990”, explica Dave (Seattle), dono da peculiar Better Read Than Dead, livraria instalada num dos quatro contentores marítimos encaixados num beco sem saída que albergam onze projectos independentes (tatuadores, velharias, pintores de letreiros e outros artigos e serviços mais ou menos punk) em plena Broadway (867). “Não havia nada em Brooklyn”, exagera Montse, arquitecta espanhola há dois anos a trabalhar em Manhattan. “Tinha medo. As pessoas caminhavam depressa.” Hoje, cada pessoa com que falamos aponta uma área no mapa distorcido da dinâmica e mutável Brooklyn — ela aponta a zona residencial de Park Slope e, já agora, os sinais da gentrificação de Red Hook (Onde raio fica Red Hook? O centro cultural Pioneer Works responde), zona onde aterrou um IKEA e onde é possível chegar num belo passeio de ferry, que triangula com o DUMBO e Wall Street.
Quando o calor apertar, procure-se uma boca de incêndio violada (sim, essa cena de filme existe bairro sim, bairro não). Quando as pernas começarem a ceder, teremos sempre jazz no LunÀtico (rua Halsey, 486; consumo obrigatório). Quando acharmos que há demasiado lixo à nossa volta para ser verdade, lembremo-nos das palavras e acções do nosso anfitrião, que sempre que vai passear o gigante Mormon leva um saco a tiracolo que enche de coisas para deixar numa mesinha no alpendre para os vizinhos se servirem (“No nosso bairro mantemos as coisas limpas e plantamos coisas. Acreditamos que a beleza pode empurrar a sujidade. É contagioso. As pessoas preocupam-se porque percebem que alguém se preocupa.”) Quando perdermos o rasto das migalhas, reencontre-se a Broadway — a do lado de cá, a genuína, provavelmente a avenida mais cheia de vida do mundo. Vamos a Manhattan? Hoje não. Fica para outro dia.