O homem dos sete instrumentos no mundo dos "estranhofones"

Não se consegue definir, mas encontra-se na busca. Entre bandas, música para teatro e cinema, projectos com comunidades e de intervenção musical criativa, Samuel Coelho não deixa caminho por percorrer e até ajuda a construir instrumentos “estranhos”, como o “gavetofone” ou o “óperafone”.

Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Fotogaleria

Durante muito tempo, Samuel Coelho buscou definir-se. O seu percurso começou na música clássica e seguiu até à Academia Nacional Superior de Orquestra, com o violino, até à altura em que se “chateou”. Abriu-se a outros géneros musicais (“dependendo da fase”), fez-se multi-instrumentista e no seu currículo alinham-se várias bandas e projectos musicais, como os El Rupe, trio de jazz fusion, os SoundMaker, perto do trip-hop, os Atic, electrónica pop, o Space Ensemble, música improvisada e experimental. Começou a trabalhar em música para teatro, como compositor, instrumentista e director musical, e em projectos com comunidades e de intervenção musical criativa com crianças e público em geral. Não a encontrou, a definição. “Não sou Y ou X, não faço isto ou aquilo, não toco música A ou B.” Mas encontrou-se nessa busca. “Sou aquele que está sempre à procura. Reinvento-me, não tenho medo de desafios. Se não sei fazer uma coisa aprendo.” E depois ensina.

A fazer “objectos incríveis”, por exemplo. Ou “estranhofones”, como Samuel Coelho os baptizou – começou por ser um, agora é uma família que vai crescendo à medida do projecto. Que nem começou como tal: no início era apenas uma apresentação no TEDx Guimarães. “Construí um objecto que não sabia o que era”, com materiais reciclados. Chamou-lhe “estranhofone”, o concerto foi filmado e propuseram-lhe a participação no Mercado dos Objectos Incríveis (no Centro Internacional das Artes José de Guimarães). Como só havia um “instrumento”, ele e César Estrela construíram o “óperafone”, com antenas parabólicas, e o “gavetofone”, com gavetas antigas – o último, o “aquafone”, surgiu na semana anterior ao mercado, durante o trabalho desenvolvido numa oficina de férias. “Eram miúdos entre os seis e os oito anos, não podíamos pô-los a cortar, furar”, explica, “por isso procurámos direccioná-los para algo mais suave”. A água surgiu, portanto, do trabalho directo com o grupo e na próxima oficina “Estranhofone” novo “instrumento estranho” nascerá de outro material “pouco convencional”. “Estamos sempre dependentes de cada grupo”, nota Samuel Coelho.

Trabalhar com comunidades e grupos foi um caminho que se abriu para Samuel depois de frequentar o curso de formação de animadores musicais do Serviço Educativo da Casa da Música. “Mudou radicalmente a minha forma de estar”, assume. “O trabalho com comunidades obriga a descobrir-nos, perceber que os nossos pontos fracos são os fortes dos outros e que se nos juntarmos enfatizamos o melhor em nós e nos outros.” É um trabalho de equipa, defende – “eu estou para eles e eles para mim”. Recorda uma das suas (muitas) colaborações com a Onda Amarela (com quem já trabalhou, por exemplo, com refugiados no Luxemburgo), neste caso no festival Tremor.  Com um grupo de surdos teve “uma aprendizagem brutal”. “Quando fomos para os Açores, não tínhamos a mínima ideia de como ia ser e ouvimos algo que nunca esquecerei: ‘o surdo é aquele que ouve com o corpo todo’”, sublinha. Assim, o trabalho aí desenvolvido foi à base vibrações, com ensaios descalços em palco de madeira.

Quando conversamos, está num projecto diferente, uma residência artística de uma semana para uma co-produção com o Centro Cultural Vila Flor: prepara-se uma peça de teatro com dois actores – “90% da peça é sonoplastia”. Este foi um caminho que começou a percorrer há um ano e continua entusiasmado. Comprou um gravador e com ele pratica o “exercício de escuta” e isso também “tem a ver com a música”. “Uma coisa é caminharmos naturalmente, ouves as coisas e não fazes caso ou nem sequer as captas; outra é andar com auscultadores e microfones, isolas os sons.” E os sons isolados transformam-se. Como aconteceu no projecto de residência artística em Tarouca, no âmbito do Festival Dias do Património a Norte. A ideia inicial era trabalhar com a comunidade, mas “a comunidade não aderiu tanto”, recorda. “Quis o destino”, como diz, que encontrasse um centro de dia, onde os utentes foram mais colaborativos. Do trabalho com eles e com um fotógrafo resultou uma instalação sonora apresentada no Mosteiro de Salzedas, em que os sons são os do território usados como instrumentos, criando notas longas, drones, harmonias – os sinos, por exemplo, tornaram-se batidas.

Foto

Quando trabalha em sonoplastia usa computador, para editar os sons gravados. De resto, não usa, nem tem sequer: para o que precisa há sempre alguém que empresta. O que não dispensa é um caderno, “tipo Moleskine mas versão barata”, onde tira as suas notas, anota acordes, escreve músicas. Guarda todos, como uma colecção: “É o meu backup”. De resto, usa bobinas, cassetes. Analógico, portanto, com o seu telemóvel antigo, a ausência de Internet (e de presença em redes sociais: a sua mochila, “tipo Sport Billy”, é o seu mural do Facebook, brinca, com pins dos seus projectos), o seu recanto criativo, uma casa no campo, só com aparelho de DVD. “Gosto muito de filmes.”

Tanto que a convite de Malta Capital Europeia da Cultura 2018 esteve na ilha de Gozo a fazer uma residência artística com o seu projecto de música improvisada para cinema, M.O.D.S. Collective. O trabalho culminou com a projecção de dois filmes de um realizador maltês da década de 1960 com música ao vivo. Para os 25 anos do Festival de Paredes de Coura preparam algo semelhante, mas desta feita com matéria original. “Pedimos imagens do festival ao longo dos anos e contratámos alguém para editar.”

Samuel Coelho, 37 anos, não faz planos a longo prazo. Mas tem a certeza de que no seu caminho hão-de surgir muitos projectos. Há-de cruzar-se com muitas comunidades diferentes. Há-de reinventar-se muitas mais vezes.

Sugerir correcção
Comentar