O guardião da paisagem sonora do Algarve

Dos ritmos do mar ao afã das cidades, Carlos Norton quer recolher todos os elementos que compõem o património sonoro do Algarve. O que nasceu para matar saudades de casa pretende agora registar a evolução de toda uma região. O projecto que “nunca vai acabar” já soma três mil minutos, captados em 200 locais diferentes.

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Caminhamos por um carreiro de terra sobre a falésia, junto à praia do Burgau, quando Carlos pára de repente. O marco de pedra na berma do caminho identifica o sítio que tinha escolhido no mapa durante a fase de pesquisas. É aqui que vamos fazer a recolha sonora desta tarde. Da mala metálica saem os dois microfones e o gravador, acocorados junto a uma pequena moita no recorte da arriba para proteger a gravação do vento. Rec e ficamos em silêncio. Durante dez minutos, ouve-se apenas o marulhar das ondas contra os rochedos, o chilrear de pássaros distantes e raros caminhantes em passeio de Páscoa. Durante dez minutos, ouve-se apenas a paisagem sonora deste recanto da costa algarvia.

Desde 2016 que Carlos Norton, 43 anos, percorre a região para registar os diferentes elementos que compõem a banda sonora do território a Sul. Dos ritmos do mar ao restolho das serras, dos balidos no campo ao afã das cidades. O Arquivo Sonoro Paisagístico do Algarve (ASPA) inclui, actualmente, quase três mil minutos, captados em mais de 200 locais da região. De um som a outro já não distam mais do que cinco quilómetros. “Vivemos numa sociedade cada vez mais visual e preocupamo-nos em guardar o visual, ou então o som simplesmente como acompanhamento. Mas acho que ele, por si só, é merecedor de ser registado”, defende.

Para Carlos, colher as sonoridades que o rodeiam sempre foi um gesto natural. Guarda-as em minúsculas cassetes como fotos em álbuns de família. Desde as melodias que explora nos muitos instrumentos que colecciona desde os 13 anos — “há uns tempos estive em residência artística para criar a banda sonora de uns filmes sobre produtos do Algarve e quando comecei a contar todos os instrumentos cheguei aos 100”, ri-se — até aos temas que compõe quase todas as semanas — “aos 14 pisei o palco e nunca mais parei”. Ou às viagens que faz. Para onde quer que vá, ainda hoje leva um “gravador de repórter no bolso”.

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Numa das cassetes que trouxe para nos mostrar, por exemplo, lê-se “Trás-os-Montes e Irlanda”. “Isto foi por volta de 1997”, recorda. Na Irlanda, lembra-se de gravar nos pubs e durante os percursos pelo país. Em Trás-os-Montes registou um passeio inteiro na Linha do Tua. “Achei a viagem de tal maneira magnífica que, quando entrei no comboio, pus o gravador em cima do banco e aquilo ficou a gravar. Ouvem-se os passageiros, o ‘pica’ que entra, o som do próprio comboio nos carris.” O fascínio recua até ao crepitar da lareira na primeira memória de infância e continua pela música; mais tarde, pela rádio. Durante vários anos, trabalhou como locutor, produtor e sonoplasta na Rádio Universitária do Algarve.

Foi, no entanto, durante o doutoramento em Inglaterra, longe das sonoridades com que tinha crescido e da vertente artística que sempre explorara, que Carlos Norton teve a ideia de criar um arquivo do património sonoro do Algarve. Simplesmente porque tinha saudades de sentir a ondulação do mar contra o cais de Faro. “Imaginei que se pudesse pegar nos auscultadores e ouvir aquele som enquanto lia um livro, sentir-me-ia em casa”, recorda. Passaram-se dez anos, entretanto, mas a ideia começou a ganhar corpo quando Carlos fundou uma associação cultural com os outros elementos da banda algarvia Orblua. Garantido o apoio financeiro da Direcção Regional de Cultura do Algarve, o ASPA foi um dos primeiros projectos da Fungo Azul, entre exposições, edições discográficas e o Fusos, um festival de fusões artísticas que regressa em Junho a Alte.

No início, Carlos imaginou o ASPA como uma “ferramenta” para “oferecer a quem estivesse longe do Algarve e quisesse matar saudades”. Mas o projecto acabou por expandir-se a outros espectros. Por um lado, também serve como “curiosidade” para quem queira visitar ou mudar-se para a região — “se pudermos ouvir o som do centro de uma cidade, se calhar temos uma noção muito boa de como é a vida lá”. Por outro, transformou-se num registo “quase científico” daquilo que é o “património sonoro imaterial” do Algarve. “Como é algo mutável, fazer o registo hoje é importante para perceber a evolução daqui a umas décadas”, argumenta.

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É esse o mote que leva Carlos a palmilhar cada trilha sonora da região e a apontar as condições exactas de todas as recolhas. Coordenadas, data, hora, direcção dos microfones e diferentes condições atmosféricas. E sempre com o mesmo material, ainda que não tenha a qualidade de que gostaria. Só assim será possível replicar exactamente as mesmas condições e comparar o futuro com o agora. É por isso, também, que nunca repete ou edita o som recolhido, independentemente do que aconteça durante a gravação. Carlos acredita que é a única forma de captar o “som genuíno”, mesmo que a situação não seja a mais frequente naquele espaço.

O conceito já lhe valeu situações caricatas, mas o “fenómeno mais interessante” que prefere destacar é a “omnipresença dos carros” em todas as recolhas. “Fiz uma gravação dentro da mamoa, em Alcalar, que é um antigo sepulcro de difícil acesso, uma estrutura circular só com um orifício no topo, e mesmo assim conseguia ouvir uma mota e um avião”, conta. “Nesta fase do início do século XXI estamos inundados de ruído, acima de tudo de veículos. É omnipresente no Algarve inteiro, seja de dia ou de noite.”

Duas centenas de áudios depois, não deverá haver estrada asfaltada que Carlos ainda não tenha percorrido. “Acho que ninguém conhece o Algarve tão bem como eu neste momento”, sorri. Cada vez admira mais a região. “É absolutamente magnífica, tão vasta e diversa. Basta andar 20 quilómetros e estamos num ambiente completamente diferente, com cultura, sotaque, comida e pessoas diferentes.”

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Talvez também por isso, para Carlos as recolhas são para manter “sempre e sempre”. Com ou sem o apoio financeiro de outras entidades regionais. “Acho que este projecto nunca vai acabar”, acredita. Pelo menos, enquanto ele conseguir calcorrear a região de gravador em punho. “Se puder, durante 30 ou 40 anos, faço umas 100 gravações por ano. É um arquivo gigante mas que se mantém vivo e em que é possível assistir ao evoluir do som no Algarve.” Só assim o projecto faz sentido, defende. É que as recolhas feitas hoje são “interessantes”. Mas daqui a uns anos vão ser “muito importantes”, argumenta.

Nalguns casos, Carlos gravou o burburinho entre idosos com a sensação de estar a registar um som prestes a extinguir-se. Noutros casos, já não ouviu mais do que o silêncio de uma aldeia em ruínas. Foi o caso de Pero de Amigos, no concelho de São Brás de Alportel. Um sítio “absolutamente maravilhoso”, com cerca de 40 casas erguidas em redor de uma eira e com uma “paisagem linda” no horizonte. Hoje completamente abandonado. “Enquanto estive a gravar não me conseguia abstrair de como é que teria sido o som com aquilo cheio de vida. Só imaginava as vacas e as cabras a andar ali à volta com os pastores, as velhotas a mandar vir com os netos, os miúdos a brincar e a correr.” Hoje, ouve-se apenas a “saudade de um som que existiu no passado e que provavelmente nunca mais se repetirá”.

Carlos, no entanto, está optimista. Ele é dos que se mudou com a família do centro da cidade para uma quinta na serra. E defende que o caminho faz-se, cada vez mais, nos dois sentidos. Há quem continue a largar o campo, mas também quem acredite que é mais fácil viver na natureza sem abdicar dos confortos modernos. Por isso, não vaticina silêncios definitivos, antes uma mutação constante. “Não sabemos o que vai acontecer. Mas sabemos que se o espaço geográfico e cultural se transfigurar, o som vai mudar também.” E Carlos quer ser o guardião desse património.

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