Pio arromba o filme e Jonas chega mais perto de si próprio
Um cineasta nascido em Nova Iorque foi abalroado na Calábria por um adolescente cigano. Através da personagem de Pio, Jonas Carpignano, italiano para os americanos, americano para os italianos, pele negra para os brancos, demasiado claro para os negros, tacteia o seu sentimento de não pertença. Com A Ciambra há um pacto em movimento entre o cinema, as pessoas e os lugares, por um sobrinho-neto do neo-realismo italiano.
Pio vem das margens de um filme anterior, onde era personagem secundária. E é como se agora arrombasse a porta — não é metáfora — para ser protagonista. É comovente ver uma personagem a ocupar um filme como coisa de vida ou de morte. Ganha-se, aliás, se se vir Mediterrânea (2015) e A Ciambra (2017) de seguida: avista-se Pio mais ao lado no filme que Jonas Carpignano realizou em 2015, como uma tentação de caos para quem está ao centro, Ayiva, um refugiado do Burkina Faso que atravessou mar e terra em busca de ordem na Calábria; no filme de 2017 com que Carpigano se manteve em Gioia Tauro, no Sul da bota italiana, mas redireccionando a atenção para outra personagem, já é o caos que ordena. Ayiva fica de lado, Pio ocupa o ecrã. A Ciambra é o filme que agora se estreia.
É como se a ficção e o documentário, para resumir de forma grosseira, trocassem de lugar. Do filme de uma personagem com um plano e direcção — o desígnio ficcional como busca de normalização – passamos à realidade sem planos ou desculpas. Mediterrânea, o filme “de” Ayiva, é mais “normalizado” do que A Ciambra, o filme “de” Pio. Mas é inescapável que ainda assim de cada vez que o africano Ayiva e o adolescente Pio se encontram em A Ciambra — o pacto entre dois mundos que se sentem excluídos dos “italianos”: o dos refugiados africanos e o de uma família cigana, os Amato – o filme parece ser tomado por tentações redentoras. O protector Ayiva tenta normalizar o imprevisível Pio — o rapaz de 14 anos que quer afirmar-se como adulto repetindo os gestos do clã — como talvez o realizador Carpignano queira atribuir sentido, propósito redentor, à sua experiência imersiva, quando se deixou abalroar pela família Amato no seu domínio chamado A Ciambra e quando os abalroou com o seu cinema.
A primeira meia hora, ainda antes da “história” que quer atribuir sentido a tudo, é deles e dos esquemas com que se esgueiram entre a máfia calabresa e a polícia: roubar carros e “negociar” a devolução.
Não se sabe quem utiliza quem no mundo fechado de crimes e escapadelas que, ao permitir ao cinema entrar, lhe devolve uma mão-cheia de cenas com facas, roubos, cigarros e fumarada. É um pacto que não é de não ingerência. Mas tem a delicadeza de não objectificar pessoas e gestos. O realizador desvenda, tanto quanto é possível passar segredos, o método.
“Os dias não eram estruturados. Aparecíamos às oito da manhã, filmávamos cinco ou seis horas e depois parávamos para almoçar e ficávamos por ali, pela casa. Quando sentíamos que estavam prontos, voltávamos a reuni-los e filmávamos o mais que podíamos — muitas vezes apenas duas horas. Comecei o filme com um outline de personagens e situações, mas o que ia vendo era sempre mais verdadeiro em relação ao lugar. Por exemplo, conversas entre duas pessoas numa colina... ou miúdos a queimar cobre... isso entrava na narrativa.”
A ideia de fazer os Amato “representar” os seus actos, concorda, podia ter resultados obscenos, mera imitação da verdade. “À medida que as conversas progrediam, eu dirigia-as para onde sentia que deviam seguir, mas o plano não era repetir a cena como se estivessem a representar as suas actividades. Por exemplo, os miúdos fumam. Nunca disse a algum deles ‘agora tens de aceder um cigarro porque na cena anterior estás a fumar’. A ideia era que fizessem o que normalmente fariam. Sabia que certas conversas iriam aparecer, que alguns iriam comportar-se de certa maneira. A cena do jantar em família, por exemplo: nunca disse que o principal seria a irmã de Pio embebedar-se, mas sabia que se nos sentássemos todos ficariam bêbedos porque isso tinha acontecido milhões de vezes antes, e que ela começaria a beber muito e que desceria aquele clima ligeiro de gozar com as conversas. Tinha acontecido sempre quando jantava com eles. Não, não era preciso recriar.”
Aliás, Jonas conta que, tendo havido “problemas técnicos” nas primeiras semanas de rodagem de que resultou o desfoque de cenas, foi necessário voltar a filmar, mas... “Nove em dez vezes acabei por utilizar o material desfocado. Quando eles tinham de fazer algo que já tinham feito, ficavam demasiado conscientes sobre os caminhos que a conversa devia tomar e para onde é que eu estava a conduzi-los. São quase todos analfabetos. Não havia argumento que pudessem ler. Quando chegavam, conversávamos, o que permitia manter a espontaneidade. Nunca foi o processo de dizer o que tinham de dizer.”
Por isso talvez aquele momento paradoxal que é a sequência do funeral. Durante o serviço fúnebre na igreja, o padre apresenta os membros da família do defunto e os planos de A Ciambra vão dizendo também quem é quem. O momento é paradoxal porque, dizendo-nos que eles são eles, mostra também que os Amato não estão reféns deles próprios, elevaram-se a personagens de cinema.
Roubos e um funeral
“Conheci esta família quando estava na região a rodar uma curta” sobre a chegada a Itália de refugiados africanos (A Chjana/The Plain, 2012, seria o antepassado de Mediterrânea). “O carro com material técnico foi roubado por um dos irmãos de Pio. Fui negociar a devolução, mas não estavam disponíveis devido à morte de um familiar, só podiam negociar depois do funeral. Ou seja, a primeira coisa que vi deles como família foi o funeral. O carro que tinham roubado era fundamental para o meu trabalho, tive de esperar e pude observar tudo. Esse funeral estruturou para mim aquela família, delineou quem era quem, as relações que tinham uns com os outros, de uma forma que nunca fazem: é difícil saber quem é quem, de que forma estão relacionados. Foi por isso o momento, no filme, de explicitar de forma natural quem era quem. Não gosto quando os filmes traem a lógica de um mundo em favor da exposição.”
Caberá aqui, para resolver “o assunto” Martin Scorsese — é o produtor executivo – sem massacrar Jonas com o peso do italo-americano, contar que, do encontro que há semanas os dois tiveram em Bolonha, Jonas, nunca tendo perguntado directamente “porque é que se interessou pelo meu filme?”, acha que Scorsese “sentiu, ao ver A Ciambra, que estava a viver com aquelas pessoas. Que, não as conhecendo, conhecia-as bem”. Por essa razão, aliás, gostamos muito de Mean Streets (1973).
Dias antes desta conversa, Jonas levou os Amato a almoçar na praia. Ao contar isto, quer sublinhar que a história entre eles começou antes dos filmes e continua após os filmes.
“É uma relação que decorre. Foi um período intenso, vimo-nos todos os dias durante meses, mas agora não é um ‘cada um vai à sua vida porque o filme acabou’. Não. Antes já havia relação, éramos amigos mesmo antes de saber que faria um filme com eles. E enquanto não soube que tinha dinheiro para o filme, nunca lhes falei disso, não queria desapontá-los. Eles contam-me coisas, eles sabem coisas de mim. Antes de mim, ninguém tinha ido comer uma refeição a casa deles.”
Mas acrescenta: é uma relação de confiança com limites. “Sei que, embora gostem de mim, nunca poderei ser um deles. Dei-me conta, em algumas situações, e até por aquilo que no filme se passa entre Ayiva e Pio” — a amizade a concorrer com a fidelidade familiar —, “de que, quando encostados à parede, escolhem um deles e não a mim. Ou seja, sinto-me felizardo por ter chegado muito perto deles e muito perto dessa linha divisória e muito consciente dessa linha divisória”.
Itália, sinónimo de cinema
“É verdade que Pio entrou na minha vida um pouco como tenta arrombar a porta” em A Ciambra, continua. Jonas, como contou, estava a trabalhar na curta A Chjana/The Plain. Quis expandi-la para uma longa mas não conseguiu pôr o projecto de pé” — haveria de ser Mediterrânea. Pio andava por ali “constantemente” à volta de Jonas, Jonas à volta de Pio. Decidiu filmar o novo amigo. “Foi com ele que se infiltrou em mim o conhecimento desse lugar” — A Ciambra, onde antes nenhum italiano entrara, seria então o título de uma curta antes de ser esta longa. “Eu passava, naquela altura, mais tempo com os africanos, mas comecei a conhecer os ciganos e senti-me incompleto se não incluísse Pio e a sua família” no que filmava.
Jonas, Pio, Ayiva. Talvez chegue a altura para perceber o que atraiu e mantém o realizador interessado em Gioia Tauro, na Calábria, e nas mutações desse território, de contar que o realizador, 34 anos, filho de pai italiano e de mãe de Barbados, vivendo entre Nova Iorque e Itália (neste momento), sabe da sensação de não pertencer. Antes disso, uma revelação exaltante: Jonas é sobrinho-neto de Luciano Emmer, o realizador de filmes como Domenica d’Agosto ou Le ragazze di Piazza Spagna, que por sublimes que sejam não o salvaram do esquecimento. Sabe, desde criança, desde Nova Iorque, que o cinema é uma questão de território e pessoas, que cinema era sinónimo de Itália. “Cresci numa casa em que o cinema era importante todos os dias. Sempre houve discussões apaixonadas, os filmes eram parte da vida. Por isso, quando comecei a fazer filmes, vim imediatamente para Itália. Mas nunca disse a mim próprio que queria fazer parte da tradição do neo-realismo. Mas obviamente que, quando comecei a tomar decisões sobre como contar histórias, esses filmes, que foram os primeiros a emocionar-me e a formar-me, passaram a estar presentes. São as minhas referência.”
Nova Iorque, Itália, Barbados, brancos e negros... “Quando estou em Nova Iorque, sou o italiano; em Itália, sou o americano. Quando estou com brancos, sou o tipo de cor; quando estou com negros, sou o tipo de pele clara. Sempre senti que havia algo que me mantinha fora das pessoas que estão na estrada principal, sempre questionei o que era pertencer. Sou muito sensível a isso. O que me tocou em A Ciambra é que aquilo pelo qual aquela família é criticada, que é também a sua força: a solidariedade. Esse implacável ideal de que pertencem a uma tradição é o que os leva a serem segregados mas também é o que tornou possível que tivessem sobrevivido centenas de anos sem país sendo perseguidos em todos os países. Embora não me analise, não posso deixar de perceber que os filmes que estou a fazer têm lá dentro essa questão. À medida que exploro esta comunidade, acabarei por chegar perto de saber o que é que isso significa para mim.”
Os filmes que tem andado a fazer terminam com um desfoque. Com isso libertam a sensação de que algo continua para as personagens e que algo continua no trabalho de Jonas. Ver Mediterrânea e A Ciambra, um a seguir ao outro, como desafiávamos no início, torna nítido esse movimento de descoberta de um território e suas personagens.
“Os filmes são processos de descoberta de pessoas que entraram na minha vida e como tal não quero nem posso prever o que essas pessoas serão... o desfoque é possibilidade de encontro mais à frente na vida, forma de dizer aos espectadores: ‘não pensem que sabem tudo sobre estas pessoas, quando voltarmos a elas iremos saber mais’, iremos saber o que lhes foi acontecendo ou onde elas estão. É uma forma de medir a temperatura. Não só desta região mas também deste país.”
A vida em Gioia Tauro, diz Jonas Carpignano, nascido em Nova Iorque, está a ser um processo de descoberta: chegar mais perto de si próprio.