Elas deram a volta à vida por causa do alojamento local
Recebem e despedem-se dos turistas a qualquer hora, seja ao nascer do sol ou ao início da madrugada. Entre um e outro, limpam, fazem as camas de lavado, aspiram e atendem as suas dúvidas. No final do mês, garantem, não ficam com mais de metade do que aquilo que facturam. Temem agora ficar sem o seu sustento, face às mudanças que estão previstas na nova lei.
Pouco passa das sete da tarde e Ana Rita espera em frente à porta da estação de comboios. “Boa tarde, bem-vindos a Cascais”, diz, de sorriso aberto. “É assim que eu cumprimento sempre os meus hóspedes”. A língua há-de variar entre o inglês e o francês (e o que mais for preciso falar), mas a ida à estação, a pequena volta pelo centro da vila, e a ajuda a carregar malas já se tornou rotina, desde que Ana Rita Vieira, de 43 anos, se viu desempregada e apostou na criação de um alojamento local (AL) no centro de Cascais. Assim é desde Março de 2016, quando abriu as portas para acolher quem quer fazer desta a sua casa, enquanto passeiam três ou quatro dias pela vila.
Em Lisboa, aos 44 anos, Ana Cunha, foi forçada a deixar de ter a "vida descansada" que tinha quando era delegada de informação médica e ia de férias, tinha “um horário dez estrelas”, ganhava mais por trabalhar ao fim-de-semana, tinha prémios, carro da empresa e telemóvel. Agora, aos 51 anos, sai todos os dias de Sesimbra para limpar casas na capital, e fazer o check-in e check-out dos clientes.
Já Paula Pedro, de 48 anos, não quis deixar que os prédios, comprados com o suor do trabalho dos pais, continuassem ao abandono. Por isso, reabilitou-os, depois de se ter despedido, em 2014, do trabalho que fazia numa instituição de solidariedade em Setúbal. Nascida em Angola, criada em Alfama, acabou por ir parar à outra margem do Tejo, para depois regressar ao bairro.
Elas trabalham 24 horas por dia para serem “super hosts”, que é como quem diz, para darem a melhor experiência possível aos turistas que ficam nas suas casas. O alojamento local fê-las arregaçar — ainda mais — as mangas. Hoje, são reféns de comentários, estrelas, recomendações, elas trabalham sete dias por semana para terem as melhores reacções. Sabem que é isso que também traz mais turistas às suas casas.
A última semana foi um turbilhão de incertezas nas vidas de Ana Rita, Paula e Ana, que fazem parte dos 94% de pequenos proprietários que têm entre um a três alojamentos locais, segundo dados da Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP). Entre receber turistas, despedir-se deles, limpar a casa, dar as boas-vindas a mais uns, e as idas à Assembleia da República, os últimos dias têm sido passados a perceber o que vai, afinal, mudar no negócio que lhes sustenta as vidas.
"É o meu emprego 24 horas por dia"
A demissão de Ana Cunha, no final de 2011, fê-la repensar a vida e a possibilidade de criar um negócio seu. Foi por isso que comprou uma casa na Mouraria, quando o bairro ainda ficava de fora dos roteiros turísticos da capital. Mas entre todas as dúvidas, acabou por fazer as obras e pô-la no Airbnb. Quando a registou na plataforma do Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL), o apartamento ficou com o número 98. Hoje, em todo o país, esse número já passou os 71.000.
Ana Rita trabalhava numa empresa na área da comunicação empresarial que, em Junho de 2014, dispensou os seus serviços. A partir daí, aos 39 anos, começou a luta por um novo trabalho, mas as propostas que apareciam “eram ridículas para a formação e para a idade”.
Voltar a trabalhar em Lisboa, e deixar o filho pequeno em casa, por um salário baixo para as suas qualificações e experiência, não era solução. Começou a estudar outras possibilidades, entre elas a de arranjar o próprio emprego. Pegou nas poupanças e num apartamento devoluto, que ela e o marido tinham herdado e transformaram-no num alojamento local. Fizeram obras de fundo que rondaram os 40 mil euros.
"Achamos que era um bom investimento para criar o meu próprio emprego. Além disso, tinha a ver com a minha personalidade. Foi um bocadinho o arriscar", conta.
Estudou muito o mercado. Preparou-se para viver ao sabor do vento, para os Invernos vazios e Verões com muito trabalho. Preparou-se para não ter fins-de-semana, nem folgas, nem férias. “É o meu emprego 24 horas por dia”, resume, ainda que "as pessoas achem que isto é só abrir a porta e os turistas entram e o dinheiro também".
"A cada três dias tenho de mudar tudo"
"Sou eu que limpo, sou eu que passo a ferro, sou eu que vou para a lavandaria, sou eu que vou às compras, sou eu que vou receber as pessoas", elenca Ana Rita. Além disso, trata das reservas, da emissão de facturas, comunica ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a entrada e saída de estrangeiros, e entrega a taxa turística ao município.
Dá por si a falar várias línguas ao longo do dia. Recebe reservas de todo o mundo, em horários estranhos que a fazem, por exemplo, acordar a meio da noite para dar resposta aos clientes. "Às vezes dou por mim às 4h00 da manhã a escrever em francês para alguém no Canadá ou em inglês para um australiano". Seja sábado, domingo ou feriado, eles entram e saem.
Há dias em que saem pessoas de manhã e entram pessoas passado três horas. A "patrulha da limpeza", como Ana Rita lhe chama, e que é só constituída por ela, na verdade, entra em acção, com o saco da roupa lavada. Aspira, limpa o pó, faz as camas, repõe as toalhas e os miminhos de boas-vindas. E prepara-se para as ir buscar ao comboio.
Apesar de o negócio ir correndo de feição, tem hoje mais dúvidas do que certezas. Aliás, tem sido sempre assim. Ana Rita critica as sucessivas mudanças na legislação, que a fazem ponderar continuar ou não com o negócio. "Esta tendência de não se pensar a longo prazo, nem sequer a médio, faz com que o nosso receio seja quase constante. Esta instabilidade é muito perturbadora para quem é um pequeno investidor. Se perder aquilo não tenho emprego", critica.
Agora, abriu-se a porta a mais mudanças. Os vizinhos vão ter poder para decidir se querem ou não um alojamento local no prédio, as câmaras vão mediar esse processo, e decidir o número de alojamentos locais que podem existir em determinada zona da cidade que esteja sobrecarregada.
O certo é que Lisboa e Porto sofreram, nos últimos anos, uma transformação que trouxe aspectos positivos, aos quais, como em tudo, se agarram alguns negativos. Essa transformação teve várias causas: do turismo, através da hotelaria e do Alojamento Local, ao forte investimento imobiliário estrangeiro, aos projectos imobiliários de luxo, à reabilitação dos espaços públicos e às alterações à lei das rendas.
No meio disto tudo, o presidente da ALEP, Eduardo Miranda, diz que o AL serviu de “bode expiatório”. “Quer isso dizer que o AL não faz parte desta transformação nas zonas históricas? Não, claro que faz”, reconhece o responsável. Há dez anos, diz Eduardo Miranda, “um terço de todas estas casas estava vago” no centro histórico de Lisboa. Mas há factores que pesam mais neste cenário, defende. Faltam casas, a habitação foi voltada para a compra e não para o arrendamento. Para o responsável, existe realmente uma pressão sobre a habitação relacionada com o AL, “mas só em quatro ou cinco freguesias”, de um total de 1700. “Por causa de questões específicas, corremos o risco de comprometer todo o país", admite.
"O AL deu uma alma às casas"
Paula acredita que as "as pessoas do alojamento local deram uma alma às casas” da sua Alfama que era "assombrosa" e que hoje está cheia de vida. Também nos seus cinco apartamentos (três em Alfama e dois na Graça) quis contar histórias e estórias. Cada uma fala ora da família, ora a dos vizinhos que ali viveram toda a vida e que cuidaram dela enquanto os pais vendiam na Feira da Ladra.
Nisto tudo, há coisas menos boas, diz Paula. “Eu vejo os moradores muito revoltados. Compreendo que as pessoas sempre viveram nesse bairros e estão a vê-los a ficar descaracterizados”. Mas existe também “a parte boa” da renovação dos prédios e da criação de emprego nos negócios locais.
“Tem que existir um meio-termo aqui. Qualquer dia os turistas também não querem vir para se verem uns aos outros”, nota. A grande questão que se lhe impõe é perceber como alcançar este equilíbrio. É por isso que Paula defende uma fiscalização mais apertada aos alojamentos locais: “Se fossem bater às portas, se calhar muitos AL fechavam e havia mais casas para as pessoas”, sugere.
“É uma hipocrisia o que o Estado está a fazer. Quem fica são os hotéis que fizeram AL em prédios inteiros só deles. Quem vai ficar são os grandes. Cada prédio que está a ser recuperado na baixa de Lisboa é um hotel. E ninguém se preocupa. O problema está no alojamento local", ironiza, por sua vez, Ana Cunha.
Uma "manta de retalhos"
O que se esperava desta nova legislação é que fosse “uma legislação feita com calma, com coerência, não uma manta de retalhos”, nota Eduardo Miranda. Mas sim uma legislação que permitisse dar estabilidade à actividade a médio e longo prazo.
De acordo com o responsável, o alojamento local representa um terço das dormidas de turistas no país. "Estamos a falar num pilar do turismo que é hoje motor da economia".
Esta instabilidade “causa um sentimento de insegurança para quem já está e para quem quer entrar” no AL, admite o presidente da ALEP. Para já, estão ainda a analisar o novo pacote das regras que considera que foi discutido e votado “à pressa”. “É uma decisão prematura”, diz, criticando que há uma notória “falta de conhecimento prático no terreno".
A instabilidade legislativa e fiscal faz alguns proprietários ponderarem se querem continuar o negócio. "Preciso de ter alguma estabilidade para saber que o negócio continua", nota Ana Rita Vieira. Sobretudo quando 94% dos proprietários só têm de uma a três unidades e 71% só tem uma propriedade, segundo a ALEP. Para muitos, é o seu sustento e há uma fatia substancial de “hosts” com mais de 50 anos para quem é difícil arranjar outro trabalho.
"As pessoas acham que isto é o El Dorado"
“As pessoas têm ideia de que o alojamento local dá muito dinheiro. E não dá. Dá a quem não paga impostos”, sublinha Paula Pedro.
De Lisboa para Cascais, o factor sazonalidade acentua-se. “Se eu tiver Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro com quatro, cinco noites por mês, estou a perder muito dinheiro. Não posso suspender a TV cabo, a Internet, nem a conta da água, o seguro, a conta da electricidade", elenca Ana Rita Vieira.
É por isso que a elevada ocupação do Verão, que geralmente ronda os 100%, tem de dar para equilibrar com a dos meses de Inverno, bem mais fraca.
Fora as despesas básicas, há ainda o IVA, taxado a 6% que fica para o Estado, as comissões das plataformas, que vão dos 5 aos 20%. A lavandaria, os produtos de limpeza e a manutenção do apartamento, quando aparecem máquinas de café partidas ou tapetes caros com vinho entornado.
Daquilo que se recebe, estima Eduardo Miranda, o proprietário pode apenas ficar com um terço a metade daquilo que factura. “As pessoas acham que isto é o El Dorado. Sim, dá para se viver. Mas há coisas que eu tenho porque o marido continua a ter um bom emprego”, reconhece Ana Cunha.
“Isto é de pessoas para pessoas”
As três admitem nunca ter tido problemas de hóspedes com vizinhos. "Estamos a dar um poder muito discricionário aos vizinhos", critica Ana Rita, já que estes podem ter agora o destino dos seus negócios nas mãos. “Muitas vezes apresento os vizinhos. Não tenho tido problemas, mas também tenho o cuidado de os acompanhar com as malas para zelar que não batam nas paredes. Tenho as regras muito bem definidas”.
Todas concordam que quem procura este tipo de alojamento, além de ser uma escolha mais barata, é uma opção também para quem quer conviver com os locais. “Isto é de pessoas para pessoas”, resume Paula.
Ana Rita diz quer não se imagina a fazer outra coisa, mesmo que as mãos estejam vezes demais mergulhadas na lixívia. Tem conhecido pessoas fantásticas e isso basta-lhe para continuar com o negócio que tem estado “mais ou menos” a corresponder às expectativas do plano que havia traçado. Demorará entre 15 a 20 anos a recuperar o investimento, e, para já, não consegue pôr mais ninguém a trabalhar com ela.
Para já, a conjuntura internacional corre de feição a Portugal, ainda que o reaparecimento de destinos como Marrocos, Tunísia ou Turquia, ameace o ritmo de crescimento das chegadas ao país e isso contribua para recearem o futuro.
É também por isso que não pensa abrir outro AL. “Num espaço de quatro anos as coisas mudam quase anualmente. E isso dá cabo de qualquer investimento", lamenta. "Quem se quiser meter nisto tem de fazer muito bem as contas”. Sobretudo agora que o futuro voltou a ficar incerto.