Liberté, Egalité, Mbappé
Merkel e Macron, sobre quem recai a responsabilidade de salvar a Europa, podem bem inspirar-se nos Pogbas e Griezmanns da selecção francesa.
1. A Europa, cumprindo escrupulosamente o seu modelo social único no mundo, vai de férias. São sagradas. Incluem os responsáveis políticos. As crises podem perfeitamente esperar até Setembro. Provavelmente, este querido mês de Agosto europeu será o que sempre foi. Ou não. A velocidade com que tudo muda à nossa volta de uma semana para a outra, de um dia para o outro, de uma hora para a outra, vai obrigar os responsáveis a manterem-se atentos à agenda internacional.
Donald Trump não vai acabar com a “guerra comercial” para ir de férias. O escândalo da sua relação com o seu homólogo russo ainda está muito longe do último episódio. Tocou num nervo demasiado sensível da identidade americana? Ver-se-á. De resto, o Presidente americano pode continuar a sua “guerra” contra o mundo, directamente do seu resort de Mar-a-Lago, na Florida. Angela Merkel monitoriza ao minuto as ameaças americanas ao livre comércio com a Europa. Se houver “guerra”, será um dos países mais afectados. É o preço de um excedente comercial que é o maior do mundo. As grandes construtoras automóveis temem o pior. A “guerra comercial” de Trump tem um efeito diferente de país para país, mas já pesa sobre as decisões de investimento e acabará por repercutir-se no crescimento da economia europeia.
A Economist, no seu número dedicado à Organização Mundial do Comércio (OMC), tenta contrariar o pânico. Enquanto Trump ameaça todos os dias aplicar novas tarifas aos produtos chineses e aos carros de luxo alemães, os representantes das negociações comerciais da Europa, EUA e Japão negoceiam entre si discretamente uma reforma da OMC cujo objectivo é precisamente combater as distorções chinesas das suas regras. Além disso, neste mundo globalizado, muitas vezes o que parece não é. Os EUA são um mercado imenso para as marcas alemãs, praticamente sem concorrência. Quase não se vêem outras marcas europeias menos “luxuosas”, às vezes um Volvo, mas raramente. Mesmo assim, convém recordar que a BMW tem fábricas nos EUA, ao contrário, por exemplo, da Audi, que as tem no México. E que, se quisermos ir mais longe, entre as japonesas, com uma presença enorme no mercado americano, a Nissan chama-se hoje Renault-Nissan. Há outro exemplo de escola. O iPhone representa cerca de 70% de incorporação americana (a tecnologia), mais uns 10 ou 20% de valor acrescentado na China, que faz a montagem e que, por sua vez, contrata parte do fabrico das peças ao Vietname. Quando os EUA importam iPhones da China estão a importar o quê? Um produto chinês? Não. Ou seja, o funcionamento do comércio internacional pode dar uma imagem muito distorcida da realidade em matéria de défices comerciais.
Regressando à Economist, quando a imprensa europeia notícia em letras garrafais que a política proteccionista de Trump está a aproximar a Europa da China, falta a parte das queixas que os europeus têm em relação à China, não muito diferentes das americanas. Rezam as crónicas que, quando Merkel esteve recentemente em Lisboa, levantou a questão da venda da totalidade da EDP aos chineses, que está na forja. António Costa respondeu-lhe com outra pergunta: “Mas há uma política europeia em relação a isso?” Não há. A China tira proveito da crise nos países do Sul e da abertura dos países de Leste a qualquer investimento, de preferência que não seja alemão. Coloca os seus peões. Um dia há-de querer cobrar politicamente o investimento. Trump dá uma enorme ajuda, é verdade, mas isso não dispensa a Europa de definir uma estratégia para lidar com a grande potência em ascensão.
2. Também é difícil ir de férias quando o ambiente geopolítico em que a Europa se move está em mudança acelerada. Alguém tem de começar a pensar no futuro da Europa, num mundo que ameaça cair no caos, onde a “politica de potência” está a substituir a ordem multilateral com a qual se habituou a viver, funcionando como uma grande potência civil, contando com a aliança transatlântica para protegê-la, dissuadindo qualquer aventura bélica nas suas fronteiras. Já não conta. O novo dinamismo, criado há pouco mais de um ano com a eleição de Emmanuel Macron, evaporou-se diante das dificuldades da chanceler alemã, enfraquecida politicamente pela crise dos refugiados e pela inesperada instabilidade do sistema político alemão. A maioria dos governos europeus da Velha Europa está, mais ou menos, em roda livre, à procura de uma fórmula que lhes permita conter os populismos e os nacionalismos e contrariar a fragmentação. Em Washington, Trump continua a disparar para todos os lados, mesmo que acabe sempre no mesmo sítio: dá-se bem com Putin, mal com os europeus, vai continuar a privilegiar a relação com ele. Putin agradece reconhecidamente. Não vai largar facilmente esta “magnífica oportunidade” que lhe aumenta a margem de manobra na Europa, o seu verdadeiro objectivo estratégico. Além disso, nem sempre as coisas correm bem quando se trata de Putin. Escreve a Economist: “Bush viu a alma de Putin e Putin invadiu a Geórgia; Obama carregou no 'reset' e Putin invadiu a Ucrânia.”
3. Entretanto, o "Brexit" tornou-se num problema ainda mais grave do que se poderia sequer imaginar. Tal como com a deriva americana, o pior dos cenários está a desenrolar-se diante dos nossos olhos, sem que alguém consiga parar para pensar numa solução que não seja o descalabro de uma saída sem regras. É confrangedor olhar para um país como o Reino Unido, habituado a contar no mundo “acima da sua dimensão”, mergulhado numa crise existencial, com os conservadores em modo de autofagia, sem capacidade para definir o que é o seu interesse no médio e longo prazo, destituído de velhos aliados, a braços com uma negociação que é uma manta de retalhos, para a qual não se preparou nem avaliou devidamente as consequências. O que acontecerá no dia 30 de Março, caso não haja acordo, quando as fronteiras se erguerem para controlar os fluxos de mercadorias, tão intensos e tão naturais que é quase impossível pensar de outra maneira? Theresa May não sabe exactamente o que fazer. Mas também Bruxelas parece que ainda não percebeu que a estratégia negocial que definiu no início já serve de pouco. O mandato de Michel Barnier percebia-se: impedir que o "Brexit" se transformasse num mau exemplo para outros países europeus, mais interessados nos benefícios do que nas responsabilidades que advêm da adesão. Já se viu que esse perigo não existe. Pelo contrário, o problema agora vem dos países que querem ficar na União e, ao mesmo tempo, tentar sabotar as suas regras por dentro. A partir de agora, o objectivo é fazer o melhor possível para controlar os danos inevitáveis. Quando, mais do que nunca, a Europa precisa de “pesar” num mundo regressado à “política de potência”, tirar-lhe a segunda economia e a maior capacidade militar não parece muito avisado.
4. Quando “Les Bleus” chegaram a Paris para descer os Champs-Elysées, 20 anos depois da sua anterior vitória no Mundial, foram recebidos como heróis, aquecendo a alma de um país que hesita entre a eterna “malaise” e os velhos tiques de centro do universo. Ninguém se preocupou com a cor da pele desses heróis franceses, envoltos na tricolor, capazes de cantar com alma a Marselhesa. Em 1998, a equipa que venceu o mundial era a de Zidane ou de Pires. Muitos franceses olharam para ela como a mais saborosa vitória contra o nacionalismo truculento da Frente Nacional, nessa altura liderada pelo não menos truculento Jean-Marie Le Pen. Mas ninguém se lembrou de dizer que tinha vencido o Magrebe. Deixar que surja sequer a ideia de que ganhou a “equipa de África” é tão afrontoso para os próprios jogadores como para uma ideia de República que prevalece em França, para o bem e para o mal, na qual não há raças, nem origens, mas apenas cidadãos. Como escreveu um jornal francês, a festa podia resumir-se assim: “Liberté, Égalité, Mbappé.” O título desta crónica está finalmente justificado. Merkel e Macron, sobre quem recai a responsabilidade de salvar a Europa, podem bem inspirar-se nos Pogbas e Griezmanns da selecção francesa.