É mesmo preciso reformar a justiça de alto a baixo?
Como os dados mostram, há uma evidente dessintonia entre a realidade dos números e a retórica mediático-dramática.
A justiça nunca foi uma prioridade nas políticas públicas em Portugal. O que se vê, de essencial, desde 1974, são leis erráticas influenciadas pelos casos do momento, reformas que avançam e recuam ao sabor das maiorias conjunturais e análises emotivas baseadas em preconceitos.
Por razões que não cabe aqui desenvolver, volta e meia a justiça regressa ao lugar de destaque na retórica política. Estamos em mais um desses momentos de frenesim. De repente, parece que há uma emergência, que é preciso reformar tudo de alto a baixo, nas bases constitucionais, no sistema de equilíbrio de poderes e na organização dos Tribunais e do Ministério Público.
Isso não é verdade. Basta consultar as estatísticas oficiais do MJ e CSM e os dados do último relatório CEPEJ 2016, que compara a eficiência dos sistemas judiciais dos 47 países do Conselho da Europa, para ver que as razões para tanto alarme têm de ser outras.
Em primeiro lugar, o sistema de justiça nunca foi tão eficiente. O número total de processos nos tribunais baixou, em cinco anos (2012-2017), de 1.698.784 para 983.610, o que corresponde a uma redução de 42,1%. No ano passado, a taxa de resolução processual média atingiu o impressionante valor de 128%, o que significa que em cada 100 processos entrados findaram 128. Mesmo em áreas tradicionalmente problemáticas, as taxas de resolução foram assinaláveis, atingindo 161% nos processos executivos para cobrança de dívidas e 114,3% nos processos fiscais. Nas falências, insolvências e recuperação de empresas, muito importantes para o funcionamento da economia, apesar do enorme aumento de 216,7% no volume de entradas, ocorrido entre 2007 e 2017, verificou-se no mesmo período um aumento ainda maior de processos findos, que atingiu 224%. Na justiça penal, os dados são igualmente positivos. Entre 2001 e 2016, o tempo médio de duração de cada processo baixou de 14 para nove meses, com taxas de resolução acima dos 100%.
Em segundo lugar, o nosso sistema de justiça não é um sorvedouro em que se desperdicem recursos públicos. Pelo contrário, os gastos orçamentais são inferiores à média europeia. O orçamento do sistema judicial corresponde a 1,8% de todo o orçamento público, com um gasto per capita de 52 euros, contra uma média de 2,2% e 60 euros per capita na Europa. O nosso sistema judicial consome 35,1% do orçamento do sector da justiça, ao passo que a média europeia é de 50%. Além disso, há nesse orçamento uma componente de financiamento directo pelos utentes muito superior à da Europa. Em Portugal, as taxas de justiça pagas por quem recorre ao tribunal suportam 32% do orçamento do sistema judicial, contra uma média europeia de apenas 16,85%. Isso quer dizer que cerca de um terço do financiamento não provém dos nossos impostos mas sim das taxas pagas pelos utilizadores.
Por fim, o número de juízes, procuradores e funcionários judiciais é também inferior à média europeia. Trabalham nos tribunais portugueses 103,5 pessoas por cada 100.000 habitantes (19,2 juízes, 14,2 procuradores e 70,1 funcionários), ao passo que na Europa a média é de 120,2 (24,6 juízes, 11,3 procuradores e 84,3 funcionários).
Como os dados indicados mostram, há uma evidente dessintonia entre a realidade dos números e a retórica mediático-dramática. Em comparação com a Europa, a nossa justiça custa menos ao Orçamento do Estado, é altamente financiada pelos utilizadores, emprega menos pessoas e, mesmo assim, em apenas cinco anos, reduziu as pendências em mais de 42%. Portanto, as razões para querer reformar tudo radicalmente, de alto a baixo, não podem estar numa alegada ineficiência do sistema. Têm de ser outras – e são mesmo outras, como as pessoas mais atentas bem percebem.
Durante anos a fio, por incompetência e falta de interesse, quando não era excessivamente incómoda, a justiça foi abandonada à sua sorte, sem o tratamento e medicamentos de que precisava. Se reclamava por mais meios, era pedinchona e lamechas. Agora que dá sinais de boa saúde, que já se aventura nos primeiros passos fora da enfermaria, vem o médico a correr dizer que precisa de ser operada ao coração, de peito aberto.
Tem sentido perguntar se este médico quer salvar ou matar o doente.