Ainda não é desta que o homem vai preso?
É isto a boa justiça portuguesa. E se achar que não, caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem qualquer respeito pela presunção de inocência.
Há demasiada gente em Portugal a querer convencer-nos que quem exige melhor justiça é apenas um justiceiro. Se nos atrevemos a perguntar “então, mas ele ainda não foi preso?”, logo surge uma turba de senhores bem compostos a acusarem-nos de sermos adeptos do pelourinho e desrespeitadores das regras do Estado de Direito. Perguntar-se-á: mas que Estado de Direito é este que prende pilha-galinhas enquanto os criminosos de colarinho branco se passeiam pelos corredores da Justiça livres como passarinhos, anos e anos após terem sido condenados em primeira e em segunda instância? Bom, é o Estado de Direito que temos, onde uma conta bancária bojuda garante muitos anos em liberdade, graças a advogados especialistas em recursos e dilação, que conseguem arrastar processos anos a fio, evitando que os seus clientes vão parar à prisão dentro de prazos razoáveis. Consta que a isto se chama justiça portuguesa.
Os condenados do processo Face Oculta têm sido magníficos exemplos do que estou a falar. Manuel Godinho, o chamado “sucateiro de Ovar”, foi condenado a 17 anos e meio de prisão em Setembro de 2014, pelo Tribunal de Aveiro, por ter cometido 49 crimes, entre os quais associação criminosa, corrupção, tráfico de influência e furto qualificado. Godinho recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que o absolveu do crime de associação criminosa e reduziu a pena para 15 anos e dez meses de prisão. Godinho recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que reduziu a pena para 13 anos de prisão, num acórdão de 28 de Junho de 2018. Entretanto, Manuel Godinho poderá continuar a adiar o cumprimento da pena, recorrendo também para o Constitucional. Passaram quatro anos.
Mas há mais, e pior. Manuel Godinho foi também condenado, em Março de 2016, no âmbito de outro processo, por suborno a um vigilante. O Tribunal de Aveiro condenou-o a dois anos de prisão efectiva pelo crime de corrupção activa. Godinho recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que decidiu suspender a execução da pena de prisão efectiva. Foram adiantadas duas justificações para a suspensão: 1) tratar-se de um caso de “pequena corrupção” que, “não raro, é encarada pela colectividade com alguma complacência”; 2) a inexistência de antecedentes criminais por parte de Manuel Godinho. Sim, é mesmo verdade. Godinho não tem antecedentes criminais: ele continua a beneficiar da presunção de inocência, já que nenhuma das condenações transitou em julgado. Essa foi a segunda vez que a Relação suspendeu uma pena de prisão efectiva aplicada a Godinho. A primeira ocorreu num processo em que foi condenado a dois anos e meio de prisão por ter subornado um ex-funcionário da Refer. Como Godinho continua a recorrer, ele beneficia da ausência de antecedentes criminais em três processos paralelos onde já foi condenado como criminoso.
Querem mais? Armando Vara. Também foi condenado, em 2014, a cinco anos de prisão efectiva por três crimes de tráfico de influência. Como o Tribunal da Relação manteve integralmente a pena de primeira instância, ele não pôde recorrer para o Supremo. Recorreu para o Constitucional. O Constitucional rejeitou o recurso. O seu advogado decidiu, então, apresentar uma reclamação para a conferência de juízes do Tribunal Constitucional. Parece que a reclamação também suspende o cumprimento da pena. É isto a boa justiça portuguesa. E se achar que não, caro leitor, lembre-se: você é um horrível justiceiro, sem qualquer respeito pela presunção de inocência.