Um sorriso que construía pontes
Curvo-me perante a memória da vida grande e cheia de João Semedo, esperando que outros, à semelhança dele, possam continuar a saber estabelecer pontes que, no diálogo aberto e franco com os demais, consigam atingir soluções comunitárias equilibradas.
João Semedo seria o primeiro a não desejar unanimismos bacocos na hora da sua morte. Como todas e todos aqueles que deixam marcas indeléveis por onde passam e naqueles com quem privam, o ex-dirigente do Bloco de Esquerda (BE) notabilizou-se pela sua dedicação incansável à causa pública. Desde jovem, impressionado pela pobreza e pelo sofrimento humano, não terá sido casual a escolha da Medicina ou, talvez melhor, foi esta ciência que o escolheu a ele.
De sorriso fácil e rasgado, um construtor de pontes, um mediador por natureza, Semedo ensinou àqueles que dele discordavam e que o apoiavam a importância da escuta construtiva. Colocar-se “nos sapatos dos outros” – na magnífica expressão inglesa –, conseguir ver o mundo a partir de diversa cosmovisão, assentando em pontos intermédios. Fez o seu percurso político dentro do Partido Comunista, dele saindo quando percebeu – e infelizmente ainda é assim – que essa organização partidária lida mal com a diferença. A todos os níveis. Sentia-se enjaulado e emprisionado.
Necessitava, pois, do oxigénio que lhe terá faltado nos últimos anos de vida. Se tivéssemos de escolher um elemento da tabela periódica, Semedo seria esse oxigénio que suporta a vida. Amava-a, declarava-se um ser feliz, escapando ao miserabilismo humano que eternamente se queixa de um tal “destino”, olvidando que este é, em grande parte, obra das nossas acções e omissões. Nem sempre concordámos com ele e isso, para Semedo, era motivo de refinamento de argumentos, de revisitar convicções, sendo certo que as tinha muito fortes e solidificadas.
Estamos perante um ser humano que, como tantos, poderia ter sucumbido a um conformismo complacente de poltrona. Não o fez. Decidiu não o fazer, em prol de ideais que, não sendo exactamente os meus, deles se aproximam, sobretudo no sentido de um verdadeiro Estado social e de uma economia que deve ser regulada. Talvez Semedo aqui tivesse uma perspectiva de excessiva intervenção estatal para as minhas convicções, mas nos dossiers que tratou enquanto deputado, sem prescindir das suas ideias, aproximava-se e, pelo menos, escutava com delicadeza e cortesia.
Sabia bem, como lembrou Marisa Matias, que a razão não está do lado de quem fala mais alto, mas de quem permanece fiel às suas convicções, com a abertura ao outro. Não se lhe conhece, julgo, pensamento ligado ao transcendente, mas cada vez mais me convenço que o invisível aos olhos da alma é aquilo que enxergamos no dia-a-dia, a cada injustiça, a cada compadrio, a cada pessoa que não tem acesso a um mínimo de subsistência digno. Esta é a mensagem central de todas as ditas “religiões do Livro” ou dos “seres humanos de boa vontade”, continuando em linguagem bíblica.
Grato estou – e estaremos muitos, a acreditar nas declarações hoje produzidas de tão diferentes quadrantes ideológico-políticos – pela sua intervenção em defesa do Serviço Nacional de Saúde e pela liberdade de decisão na mais complexa aventura da vida que é a morte.
Ninguém é perfeito e, por certo, João Semedo cometeu vários erros políticos ao longo da sua vida. Não falo dos pessoais, por não ter tido, infelizmente, o gosto de com ele privar e na medida em que, nas vidas dentro de portas, é todo um mundo novo e tão íntimo que se abre que não reconheço autoridade a ninguém para opinar. Errar com coerência é, para mim, uma qualidade, quando tal se não torna uma obstinação inconsequente de quem se lança contra a parede e, vendo os ferimentos, continua a insistir no mesmo. A vida pública de Semedo assim o não foi, por certo. O seu legado permanecerá vivo em cada mulher e homem, do BE, do PCP, do PEV, do PAN, do PS, do PSD e do CDS – para me referir apenas aos partidos com representação parlamentar – que acreditem na capacidade de mudança e na afirmação de valores humanistas, ainda que no nosso “nano-microcosmos” de existência.
Curvo-me perante a memória da vida grande e cheia de João Semedo, esperando que outros, à semelhança dele, possam continuar a saber estabelecer pontes que, no diálogo aberto e franco com os demais, consigam atingir soluções comunitárias equilibradas.
Obrigado, João! Até sempre!