“José Mário Branco fez o disco mais revolucionário que houve em termos instrumentais”
António Manuel Ribeiro (UHF) podia ter escolhido um disco dos Doors, mas destaca antes um disco português que o marcou muito: o primeiro LP de José Mário Branco
A atracção por um disco pode dever-se aos mais variados factores mas, para um músico ou aspirante a músico, o factor novidade é fulcral. António Manuel Ribeiro, nascido em Almada em 2 de Agosto de 1954, fundador em 1978 da banda de rock portuguesa UHF (que celebra este ano o seu 40.º aniversário), teve revelações assim, nos seus tempos de estudante e já aspirante a músico. Não tem “o” disco da vida, tem vários. Mas na hora de escolher reservou um título português, como portuguesas são as muitas letras que já escreveu para os UHF. Antes, porém, conta uma história curiosa com o disco de uma das bandas que influenciou o seu trabalho, os americanos The Doors, liderados por Jim Morrison. Não, não é o Absolutely Live, título que mais tarde baptizou um trabalho dos UHF, Absolutamente Ao Vivo, de 2009; é o primeiro disco do grupo, intitulado apenas The Doors, que incluía o seu primeiro grande êxito, Light my fire.
“O primeiro dos Doors é um disco mágico”, diz ao PÚBLICO António Manuel Ribeiro, que se surpreendeu com ele na rádio. “Quando ouvi aquela entrada do Break on through, feita em baixo de teclado, na pedaleira do Ray Manzarek, eu nem sabia para onde me virar.” Isso foi em 1967/68, tinha o disco saído há pouco tempo. Nessa altura ele andava a estudar em Almada e vinha a Lisboa, à Rua do Carmo (que inspirou depois uma canção dos UHF). “Havia uma loja na zona da Rua da Prata que vendia candeeiros e coisas do género e também vendia discos. Um dia chego lá, vejo o disco e ia-me dando um ataque de coração. Como não tinha dinheiro, agarrei nele e enfiei-o no meio dos discos de folclore português, para ninguém o levar até eu poder comprá-lo.”
Uma herança? O rigor
E agora a escolha: “Há um disco português que me marca muito: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, do José Mário Branco. Só aquele baixo, no início [da Cantiga para pedir dois tostões], que dá um ritmo como se tivesse lá uma percussão, aquilo é diferente! O Zé Mário se calhar nunca percebeu que fez o disco mais revolucionário que houve em termos instrumentais. E há a questão das letras, obviamente [do próprio José Mário Branco e de Sérgio Godinho, a par de poemas de Luís de Camões, Natália Correia e Alexandre O’Neill]. Mas aquele disco, junto com o segundo dele, Margem de Certa Maneira, ainda hoje, quando os ouço, para mim são do melhor que há.”
Ouviu-o também na rádio, mas só conseguiu comprá-lo “muito mais tarde”, a seguir ao 25 de Abril. Na altura, António Manuel Ribeiro tinha ido estudar para o liceu D. João de Castro, em Lisboa, porque em Almada não havia ciências. “De manhã, chegávamos e a fachada estava toda pintada de vermelho a dizer ‘greve’ não sei aonde. E estavam lá os contínuos a impedir que nós virássemos a cara para lá, tínhamos de passar sem olhar. À hora do almoço, depois de ir lá a polícia, já estava tudo pintado de cinzento.” Teve José Barata Moura como professor e na clandestina “troca do stencil” tomou conhecimento com a poesia de Manuel Alegre. “Aí começa a haver um despertar da consciência.”
Voltando ao disco: “Estávamos habituados à guitarra e à voz. E o Zé Mário, quando chega com aqueles instrumentos, aquilo para um aspirante a músico era revolucionário. O disco foi gravado no Château d’Hérouville, em França, havia ali com certeza outras pessoas a circular, e ele cruzou essas influências de forma magistral.” E o que herdou daí o líder dos UHF? “O rigor. Sou um chato em estúdio. Não me tentem convencer de uma coisa de que não estou convencido. Misturo, remisturo, regravo até estar bem.”