Putin e Trump, almas gémeas
Ao contrário de George W. Bush, Trump nem precisava de encontrar-se com Putin para ver-lhe a alma. Já a conhecia. São almas gémeas.
Em Junho de 2001, George W. Bush e Vladimir Putin estiveram frente-a-frente pela primeira vez. Desde 1999 que o clima da relação entre os Estados Unidos e a Rússia era de tensão, essencialmente devido a três desenvolvimentos fundamentais. Primeiro, a Guerra do Kosovo, tendo a intervenção da NATO na Sérvia contado com a forte oposição russa. Segundo, a ascensão de Putin à presidência e a adopção de uma política externa mais agressiva. Terceiro, a concretização do alargamento da Aliança Atlântica à República Checa, à Polónia e à Hungria, o que deixou Moscovo profundamente ressentida e com um sentimento de cerco. Porém, após o encontro entre os dois líderes, o norte-americano afirmou que tinha “olhado nos olhos” o seu congénere russo e “viu-lhe a alma”, concluindo que ele era “confiável”.
Donald Trump deixou Bruxelas, onde esteve por ocasião da Cimeira da NATO, e seguiu para Helsínquia (passando por Londres), uma sequência em si mesma significativa. Mas o que não tem precedentes na história dos últimos 70 anos é o facto de um Presidente dos EUA estar mais predisposto a criar uma boa relação com a Rússia do que com os seus parceiros da Aliança Atlântica. Até parece que os “aliados permanentes” tornaram-se “adversários permanentes” e o inimigo intermitente passou a ser amigo para sempre.
Em rigor, desde o fim da Guerra Fria todos os presidentes norte-americanos começaram os seus mandatos tentando uma normalização das relações com Moscovo. George Bush pai procurou estabelecer uma parceria estratégica, sendo o melhor exemplo disso a ligação intensa que existiu entre os dois países durante a Guerra do Golfo. Bill Clinton procurou levar a parceria ainda mais longe, fazendo da acomodação da Rússia na nova ordem internacional — traduzida na sua participação na resolução dos grandes problemas mundiais conjuntamente com os Estados Unidos — a chave do mundo do pós-1991. George Bush filho, depois de ter visto a alma de Putin, não foi tão ambicioso, mas ainda assim procurou criar uma cooperação americano-russa, expressa no relacionamento quase perfeito que existiu após o 11 de Setembro de 2001 (Vladimir Putin foi o primeiro chefe de estado a ligar a George W. Bush e ofereceu-lhe toda a ajuda que precisasse na luta contra o terrorismo) e que durou até à Guerra do Iraque de 2003. Barack Obama tentou a sua Reset Policy e assinou o acordo nuclear New-START.
Deste modo, Trump não é completamente original. Mas vai muito mais longe e parece apostado numa aliança com a Rússia.
Mesmo antes de se tornar Presidente não escondeu a sua simpatia por líderes nacionalistas fortes, como Putin, capazes de manter a ordem dentro de casa e na sua vizinhança. Deixou cair a componente normativa da política externa dos EUA, passando a ser irrelevante a natureza interna dos regimes enquanto questão internacional, o que se traduziu no fim da preferência pelas democracias liberais na hierarquia das alianças norte-americanas. Deu vários sinais de que as relações mais importantes dos Estados Unidos são com a Rússia e a China, as outras grandes potências (ou a caminho de o serem), sendo os Estados com pouco hard power (como os europeus) quase irrelevantes.
Defendeu que numa balança tripolar – Washington, Moscovo, Pequim – a prioridade é estar mais próximo dos russos do que estes estão dos chineses, vistos como a grande ameaça a prazo. Também foi claro ao identificar Moscovo como uma aliada preferencial para resolver um conjunto de problemas internacionais, tais como a guerra da Síria, o combate ao terrorismo, a destruição do Daesh e mesmo a ameaça do Islão Radical.
Donald Trump quer fazer o que nenhum dos seus antecessores conseguiu antes dele: uma aliança americano-russa. Porque gosta de Putin, respeita o poder da Rússia e precisa dela num mundo a três. Todavia, desde logo por razões geopolíticas, não será fácil. A muito recente estratégia de segurança nacional dos EUA, bem como a estratégia de defesa nacional, identifica a Rússia (e a China) como potência revisionista e considera estas como uma das grandes ameaças à segurança do país.
Também não se vê como pode compatibilizar isso com a existência de uma NATO que tem como membros a Polónia e as Repúblicas Bálticas, para referir apenas os exemplos mais significativos, ou, no Médio Oriente, com a aliança com Israel e a Arábia Saudita, que percepcionam o Irão (aliado da Rússia) como a ameaça existencial. Acresce que do ponto de vista interno, a questão ainda divide muito a elite política, sendo, no mínimo, preciso esperar por dois momentos decisivos: as eleições intercalares de Novembro deste ano e as presidenciais de 2020.
Seja como for, ao contrário de George W. Bush, Trump nem precisava de encontrar-se com Putin para ver-lhe a alma. Já a conhecia. Eles são almas gémeas.
Professor na Nova FCSH e Investigador no IPRI