“Taxi Driver é um grito do coração de um jovem rebelde, No Coração da Escuridão são as reflexões desesperadas de um homem de 70 anos”
Em agonia espiritual e física, o silencioso, grácil e assustador Ethan Hawke, perante a corrupção do corpo, da igreja e do meio ambiente, veste o colete de explosivos. É a personagem do intenso e inusitado filme de Paul Schrader. Que se coloca, em resistência passiva-agressiva ao template actual, no tempo em que, nos anos 70, o cineasta escreveu os primeiros argumentos (Taxi Driver) e realizou os primeiros filmes (Hardcore) ou American Gigolo).
Paul Schrader não tem memórias de cinema da infância. Na restrita educação calvinista em que foi formado, a Dutch Reformed Church de Grand Rapids, no estado de Michigan, só as palavras eram ideias. As imagens da televisão e do cinema eram meio caminho andado para o inferno — a mãe espetou-lhe um dia uma agulha na mão, aquilo, essa dor “sempre”, isso era o inferno.
Nascido em 1946, Paul Schrader só viu o primeiro filme aos 17 anos, uma produção da Disney, The Absent Minded Professor (1961). Não percebeu para quê tanto barulho. Percebeu com Wild in the Country (1961) e com os seus sentimentos infernais pela actriz Tuesday Weld.
As memórias de infâncias são sobretudo de discussões teológicas na cozinha. É uma das razões, diria mais tarde o argumentista e realizador, pelas quais os seus filmes seriam acusados de “frieza” — não aprendeu a emocionar-se com o cinema. De facto, ficamos a pensar na forma como algumas personagens que criou descolaram da emoção e dos sentimentos, têm dificuldade em sentir — o Richard Gere de American Gigolo ou o Willem Dafoe de Light Sleeper, filmes que realizou, ou o compêndio de solidão, até de celibato, e de tendências suicidas que é a maior personagem do cinema americano dos anos 70, o Travis Bickle de Taxi Driver (1976), filme que escreveu. Foi o encontro entre o mundo protestante e rural dele e o mundo urbano e católico de Martin Scorsese — O Toiro Enraivecido, A Última Tentação de Cristo, Bringing Out the Dead seguiram-se-lhe.
O argumento de Taxi Driver, escrito em dez dias como se expulsasse de si o fascínio pelas armas, a obsessão pelo sexo, as tendências suicidas e uma úlcera — isto nos tempo em que, como uma bala, já disparara para fora de Grand Rapids, da família e do mundo calvinista onde não havia corpo e só havia palavras —, tem a mesma “música” de abertura de portas ao filme de terror que se ouve em No Coração da Escuridão.
É este o inusitado novo filme do cineasta. Inusitado porque, datado de 2017, parece não querer saber da cronologia e colocar-se, com atitude de resistência passiva-agressiva ao template das práticas cinematográficas actuais, no tempo em que Schrader realizou os primeiros filmes, Blue Collar (1978) e Hardcore (1979), e eternizou Travis Bickle, a personagem que vive no reverendo Toller (Ethan Hawke) de No Coração da Escuridão — vejam só, para além daquela plongée sobre um copo com que o novo filme homenageia o outro, que por sua vez já fazia a sua homenagem, Toller tem um cancro como Travis achava que tinha um cancro.
Toller sente, é a linhagem schraderiana da personagem, que não foi feito para amar. Ex-capelão do exército em agonia espiritual e física na igreja mais antiga aberta continuadamente para o culto em Albany, estado de Nova Iorque, o silencioso, grácil e assustador Toller, perante a corrupção do seu corpo, da sua igreja e do meio ambiente (descobre ligações entre a igreja e multinacionais que lucram com a destruição do planeta), veste o colete de explosivos como quem herda um património: o sangue limpa — como Travis Bickle quis limpar.
É um filme de outros tempos também porque No Coração da Escuridão podia ser contemporâneo de Hardcore, filme em que o realizador olhou para o microcosmo religioso que o formou e filmou, nesse caso com alguma nostalgia enquanto agora a América é de uma inamovível claustrofobia, o percurso de um pai que partia em busca da filha que fugira para o porno — como Schrader fugira para os filmes e para o sexo.
Isso foi depois de o cinema ter levado a melhor sobre a filosofia em Paul Schrader. Foi depois de frequentar uma retrospectiva de Ingmar Bergman num cinema porno em vias de fechar — “cena” que parecia anunciar futuros filmes — e de ter percebido que o que ali se passava, nos filmes de Bergman, era não só compatível com o que se discutia nas aulas de Teologia do Calvin College, como era a mesma experiência do sagrado, só que através da pura forma.
O cinema tornava-se nesses anos opção de vandalismo, de revolta. Começou a escrever críticas no jornal do Calvin College e a organizar um clube de cinema rigorosamente vigiado. As fantasias de ser pastor da Igreja ou advogado (suceder espiritualmente estava ligado, na comunidade, ao sucesso material) foram sacudidas pela vontade de ser escritor ou jornalista. O mundo americano era sacudido pelos protestos antiguerra no Vietname.
E saiu disparado. Entrou na Universidade da Califórnia de Los Angeles em 1968 — com a ajuda da crítica Pauline Kael, de quem foi protegido. Via 25 filmes por semana, tratou de recuperar o tempo perdido, não perdendo tempo com sexo. Nessa altura... depois experimentaria como um sensualista e os filmes dos anos 80, American Gigolo ou Cat People, por exemplo, foram dando conta dessas descobertas e fascínios.
“Limpou” então a história do cinema de forma analítica, por períodos e épocas. Escreveu na Los Angeles Free Press, plataforma para o jornalismo comprometido e radical da altura, sobre Pickpocket de Bresson e sobre Bud Boetticher, e na revista Cinema sobre Sam Peckinpah e Rossellini. Dava assim vazão a uma costela de evangelizador, queria iluminar os fiéis. Um texto a destruir Easy Rider fê-lo ser despedido do Los Angeles Free Press. Mas estava já a escrever um livro que, querendo ultrapassar as narrativas autorais difundidas na época, versão francesa (Cahiers du Cinéma) e americana (Andrew Sarris), procurava não o que diferenciava os realizadores, não as suas idiossincrasias, mas o que os aproximava: a retenção formal, a frustração da empatia de que o espectador estaria à espera, para causar a explosão final, uma experiência espiritual. Chamou-se, esse livro, Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer. Como acontece às personagens de Paul Schrader, que em vários filmes repetiram os estranhos caminhos do Pickpocket de Bresson até à Graça, apaziguando então os olhos para receber a revelação, foi preciso tudo isto para Paul Schrader chegar ao seu melhor filme: No Coração da Escuridão.
A personagem de Ethan Hawke em No Coração da Escuridão tem um diário — Robert de Niro tinha um em Taxi Driver [Martin Scorsese, 1976]. Na sua educação calvinista, as palavras eram mais importantes do que as imagens, que eram desvalorizadas. É por isso que as personagens mais catárticas do seu cinema nos são apresentadas através de uma voz diarística? No reverendo Ernst Toller de No Coração da Escuridão ouve-se a “música” do Travis Bickle de Taxi Driver.
Um e outro caso, e podemos ainda acrescentar [Willem Dafoe em] Light Sleeper [Perigo Incerto, 1992], vêm das duas vezes que [Robert] Bresson utilizou esse dispositivo, em Diário de Um Pároco da Aldeia [1951] e Pickpockett [1956]. Acho uma técnica muito eficaz. É como se estivéssemos a ser alimentados de forma intravenosa: estão a dar-nos comida, embora não provemos o sabor. Algo entra no nosso sistema, não sabemos exactamente o quê [risos].
O homem que escreveu um e outro, você, é um homem diferente...?
Sim, várias décadas nos separam...
No entanto, não posso deixar de sentir No Coração da Escuridão próximo dos seus filmes iniciais, de Hardcore [A Rapariga da Zona Quente, 1979] ou de American Gigolo [1980].
Não é tanto um regresso quanto um fecho.
Em 1969 eu era crítico de cinema e vi esse filme chamado Pickpocket. Tive duas ideias depois desse filme de 75 minutos. Uma delas era escrever um livro sobre o estilo transcendental: a ideia de que o sagrado pode ser transportado por um filme estilisticamente em vez de tematicamente. A outra foi escrever uma história sobre uma personagem como a do filme de Bresson: um tipo que vivia no seu quarto e escrevia um diário. E assim no ano seguinte escrevi Transcendental Style in Film — Ozu, Bresson, Dreyer e depois Taxi Driver. Quase 50 anos depois, dessas duas concretizações brotou este filme.
Enquanto Ethan Hawke escreve o diário, sem piedade como ele diz, No Coração da Escuridão está a ser “escrito” com a mesma austeridade. Tudo o que se passa entre as personagens, os silêncios, os gestos, as palavras, organiza-se como uma liturgia.
Sim, é mais uma liturgia do que uma narrativa. O estilo do filme, como o estilo da narração, está cheio de mecanismos de distanciamento, elementos estilísticos que retêm aquilo que o espectador espera, como a música, os movimentos de câmara, a montagem rápida. Aquele que vê/escuta deve preencher as lacunas.
Como se, enquanto filmasse, “escrevesse” Transcendental Style in Film...
Sim, e é a primeira vez que tento fazer isso. E nunca pensei que o fizesse alguma vez.
Há três anos, com a idade de 69, enquanto falava com Pawel Pawlikowski, que fez o filme polaco Ida [Óscar do Melhor Filme Estrangeiro em 2015], percebi que chegara o momento de fazer eu próprio um desses filmes. Em vez de escrever sobre um desses filmes, fazer eu um desses filmes.
Por isso se sente que, quando o reverendo Toller diz que vai escrever o diário à mão, e explica porquê e como, se fixa aí também o gesto de No Coração da Escuridão.
Sim, ele está a falar com ele próprio. Isso é o primeiro nível, mas acho que está também a falar com o espectador.
É impressionante ver A Rapariga da Zona Quente e No Coração da Escuridão, filmes nascidos do ambiente em que cresceu...
Por ambiente quer dizer a minha educação religiosa?
Ainda vou à igreja com regularidade e o meu filho é professor numa escola cristã...
... sim, referia-me ao retrato da América que aparece nesses filmes... No Coração da Escuridão é mais claustrofóbico. Talvez porque a personagem de George C. Scott em A Rapariga da Zona Quente tinha hipóteses de movimento: havia uma janela para um mundo diferente — por exemplo, o encontro com a personagem da actriz porno. Já Ethan Hawke está sempre no interior das suas prisões. A América já não é “familiar”, foi ocupada pelas corporações.
Sim, há elementos que dão para fazer essa associação. Taxi Driver e A Rapariga da Zona Quente são cris de coeur de um jovem rebelde, enquanto No Coração da Escuridão são as reflexões desesperadas de um homem de 70 anos.
Naquele tempo havia liberdade no ar, liberdade sexual, drogas, liberdade no vestir e na música, liberdade de pensamento. Havia protestos. Não há muita liberdade no ar neste momento.
Qual é a sua relação com a América hoje?
Já não sinto que seja o meu país.
Ainda é homem de fé?
Vou à missa aos domingos. Gosto da minha igreja.
Toller diz que a razão não é uma resposta ao desespero, que a esperança e o desespero dão forma à vida. Concorda?
[Albert] Camus disse: “Eu não acredito, eu escolhi acreditar.” Isso é verdade hoje para a esperança. Não há razão para ter esperança, mas podemos escolher ter esperança.
E o que fazer ao sangue, essa coisa do sangue nos seus filmes, como uma patologia?
Isso vem de todas as religiões abraâmicas, judaísmo, islão, catolicismo. Tudo começa com a noção de sacrifício de sangue. Os cristãos e os islamitas passam-se da cabeça nisso de confundir o auto-sacrifício com o sacrifício do cordeiro.
Tem dúvidas na sua fé?
Não penso que se possa ter fé sem ter dúvidas.
Ethan Hawke... os intérpretes dos seus filmes costumam ser homens de linhagem ameaçadora, De Niro, Willem Dafoe [Light Sleeper]. Há um lado de eterno jovem em Hawke. Porque é que o escolheu?
Tem o ar adequado para a agonia de um homem de sotaina em sofrimento. Como outros actores, por exemplo Montgomery Clift [I Confess, de Alfred Hitchcock, 1953] ou [Jean-Paul] Belmondo [Léon Morin, prêtre, de Jean Pierre Melville, 1960]. Sempre achei que era um belo actor, mas agora, para além disso, tem em seu favor a idade, há linhas interessantes que começam a aparecer na cara. Sempre achei que podia ser um grande actor, se interpretasse para dentro em vez de interpretar para fora. Por isso fui buscá-lo.
A propósito de interiores: ao contrário dos banhos de sangue finais de Taxi Driver ou de A Rapariga na Zona Quente, neste último filme a sangria é interiorizada, como o filme, que é peça de câmara — mas igualmente violento.
Toda a noção de auto-análise, de nos colocarmos no sítio certo para olharmos para nós próprios e ver o que acontece... não é pacífico o que acontece quando se entra dentro.
Ainda vai ao cinema?
Não tanto como ia, mas isso é verdade para toda a gente. Há quatro tipos de cinema na América: o de espectáculo, o familiar, o hardcore e o art house. O mainstream do entertainment neste momento está na televisão.
Os filmes que não viu em criança e adolescente dão forma aos filmes que faz?
O que dá forma aos filmes que faço é o facto de ter chegado ao cinema quando já era adulto. Os primeiros que vi foram os filmes europeus dos anos 60. Quando penso nos filmes por que me apaixonei, penso em Godard, Antonioni, Bresson e Truffaut, ao contrário de muitos dos meus amigos, que pensam em westerns e comédias.
Ainda são seus amigos [Scorsese, Coppola, DePalma, a geração dos movie brats]?
Ainda nos mantemos em contacto, mas cada um de nós regressou à sua própria comunidade.
A sua geração foi derrotada?
Nos anos 60 pensávamos que estávamos a forjar uma nova cultura. Houve de facto uma nova cultura que estava a ser forjada, mas não era a nossa, era aquela que se opunha à nossa. Cinquenta anos depois, suprimiram-nos completamente.
Um filme como este, com o background religioso e político, é um milagre existir. Alguém apostou nele, foi distribuído em 500 salas nos EUA e ainda acabou a fazer algum dinheiro. Mas os filmes deixaram de ser intelectuais. E deixaram de ser religiosos. No Coração da Escuridão vai ser distribuído em Portugal?
Sim, por isso estamos aqui a falar...
Uau...