Neutrinos: descoberta a origem cósmica destas partículas fantasmagóricas
Um observatório de neutrinos no Pólo Sul e vários telescópios espalhados pela Terra e no espaço detectaram a origem de neutrinos de altíssima energia. Vêm de uma galáxia activa a 4000 milhões de anos-luz.
Pela primeira vez, uma equipa internacional de cientistas – incluindo Alessandro de Angelis que agora faz investigação em Portugal – identificou a fonte de neutrinos de altíssima energia vindos de fora do nosso sistema solar. De onde vêm então esses neutrinos cósmicos? De um blazar, uma galáxia activa gigante e em forma oval com um buraco negro supermaciço no centro, situada a cerca de 4000 milhões de anos-luz de distância da Terra. Revelada esta sexta-feira na revista científica Science, a descoberta aconteceu graças a um observatório nas profundezas de um glaciar na Antárctida – o IceCube – que “avisou” outros telescópios em solo e no espaço da detecção da possível origem de neutrinos num objecto distante através de um sistema “alerta de neutrino”.
Os neutrinos são partículas elementares muito esquivas. Têm pouca massa, carga eléctrica nula, não são desviados da sua trajectória pelos campos electromagnéticos e praticamente não interagem com a matéria. A cada segundo que passa, milhares de milhões deles atravessam a Terra, e o nosso próprio corpo, sem grandes interacções e sem darmos por isso. Daí que estas partículas tão fugazes sejam muito difíceis de detectar.
De vez em quando, lá os vamos apanhando. Detectores subterrâneos já conseguiram captar neutrinos de baixas energias vindos do Sol, de supernovas próximas da Terra e também gerados aqui na atmosfera terrestre. Também em 2001 foi anunciado que o telescópio AMANDA (Antarctic Muon and Neutrino Detector Array) detectou neutrinos de alta energia. Esse telescópio enterrado a 1500 metros no gelo da Antárctida captou neutrinos atmosféricos que são criados quando os raios cósmicos embatem na atmosfera da Terra. Isto é, uma partícula vindo do espaço, como um protão ou um neutrão, interage com o ar da atmosfera e isso resulta num neutrino.
Mas os neutrinos que os cientistas verdadeiramente cobiçam são os neutrinos cósmicos de altíssima energia. Essas partículas são consideradas mensageiros fantasmagóricos que viajam por milhares de milhões de anos-luz e transportam informação directamente dos confins do Universo, de processos violentos e produtores de altas energias. Esses mensageiros atravessam as estrelas, os campos magnéticos ou galáxias sem interferências, o que também os torna difíceis de detectar.
Em 1987, já se tinham observado neutrinos vindos de fora do sistema solar, nomeadamente de uma supernova próxima da Terra, mas (como foi referido) eram de baixa energia. Foi em 2013 que o observatório subterrâneo IceCube conseguiu detectar, pela primeira vez, os tais neutrinos cósmicos de altíssima energia. Desde então, já foram captados 82 neutrinos de alta energia.
Totalmente operacional em 2010, esse observatório tem um quilómetro quadrado, situa-se a uma profundidade entre 1500 e 2500 metros nos gelos da Antárctida e tem mais de cinco mil detectores ópticos, que são sensíveis aos ténues impulsos de luz azul gerados pelas interacções dos neutrinos com o gelo. Este “telescópio” de neutrinos mede o fluxo de neutrinos de alta energia e tenta determinar as fontes cósmicas que os produziram.
Já se especulava que esses neutrinos pudessem vir do interior de “aceleradores cósmicos”, como buracos negros, pulsares ou núcleos galácticos activos. Agora identificou-se pela primeira vez onde terão sido criados.
Caça à fonte do neutrino
Tudo começou a 22 de Setembro de 2017 quando o IceCube detectou um único neutrino com uma energia muitíssimo elevada de 290 TeV (teraelectrões-volt), o que poderia significar que este neutrino vinha de um objecto distante muito activo. A título comparativo, o grande acelerador de partículas LHC, no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), na Suíça, onde já foi detectado o bosão de Higgs, está concebido para atingir um recorde de energia de 14 TeV.
A caça à fonte dos neutrinos funcionou praticamente em sintonia entre os telescópios na Terra e no espaço através de um sistema de alerta quase em tempo real desencadeado quando o IceCube detectou um neutrino de alta energia. “Como a produção de neutrinos cósmicos é, segundo os modelos, sempre acompanhada de raios gama [fotões de alta energia], o IceCube enviou imediatamente um ‘alerta de neutrino’ a todos os telescópios espalhados pela Terra e pelo espaço, na esperança de que as suas observações permitissem identificar com precisão a fonte”, explica-se num comunicado do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), instituição portuguesa que teve um investigador envolvido no trabalho.
Foi assim que o telescópio espacial Fermi, da NASA, observou emissões de uma fonte de raios gama vinda da mesma direcção de onde vinha o neutrino, nomeadamente o blazar TXS 0506+056. Depois, o telescópio Fermi enviou um “telegrama astronómico” que fez com que outros 14 telescópios apontassem na direcção da fonte observada. Em 12 horas de observação, os telescópios de raios gama MAGIC (Major Atmospheric Gamma Imaging Cherenkov Telescopes), nas ilhas Canárias, captaram a emissão de raios gama com energia mil vezes superior à observada pelo Fermi.
No final, analisaram-se as observações dos vários detectores e concluiu-se que a fonte do neutrino cósmico é o tal blazar, no “coração” de uma galáxia a cerca de 4000 milhões de anos-luz de distância, na direcção da constelação Orionte. Este blazar tem jactos de luz e partículas energéticas a velocidades próximas da velocidade da luz, e um deles está alinhado na direcção da Terra, segundo o comunicado da Universidade de Adelaide (Austrália).
“Os blazares, uma classe de núcleos galácticos activos com poderosos [chamados] jactos relativísticos apontados para perto da nossa linha de visão, são importantes fontes candidatas de emissões de neutrinos de altíssima energia”, lê-se num dos dois artigos científicos da Science sobre este trabalho.
“É um resultado que vai estar nos livros de física do futuro”, reage em comunicado Alessandro de Angelis, um dos autores do estudo que fez parte da equipa dos telescópio Fermi e MAGIC, e agora investigador no LIP e professor convidado do Instituto Superior Técnico de Lisboa. “Só foi possível com observações multimensageiro, que implicam partículas diferentes. Esta é a nova astronomia do século XXI, e este acontecimento é o segundo capítulo, nove meses depois do evento de uma onda gravitacional em 2017.” Alessandro de Angelis está a referir-se à detecção, a 17 de Agosto de 2017, de uma onda gravitacional gerada pela colisão de duas estrelas de neutrões. A primeira onda gravitacional de sempre foi detectada em Setembro de 2015.
E os raios cósmicos?
“Esta é a primeira prova que temos de que uma galáxia activa emite neutrinos, o que significa que em breve poderemos começar a observar o Universo usando neutrinos, para assim aprendermos mais sobre esses objectos de uma forma que seria impossível só com luz”, considera Marcos Santander, da Universidade do Alabama (EUA), num comunicado da sua instituição. E Gary Hill, outro dos autores da Universidade de Adelaide, acrescenta: “Encontrámos não apenas a primeira prova de uma fonte de neutrinos, mas também provas de que esta galáxia é um acelerador de raios cósmicos.”
Esta detecção da fonte dos neutrinos pode também ajudar a resolver o mistério da origem dos raios cósmicos. Descobertos em 1912 pelo físico Victor Hess e observados pela primeira vez em 1938 pelo também físico Pierre Auger, os raios cósmicos são partículas invisíveis que bombardeiam a nossa atmosfera. Na sua maioria, os raios cósmicos são protões ou núcleos atómicos, desviados pelos campos magnéticos que atravessam o cosmos. Já se confirmou que os raios cósmicos mais energéticos vieram de fora da nossa galáxia, mas não se sabe de onde. Ora, os neutrinos, que também são produzidos por protões de elevada energia, não são desviados por campos magnéticos, podendo assim indicar a origem dos raios cósmicos.
Os cientistas já especularam que os raios cósmicos possam vir de restos de supernovas, colisões de galáxias, núcleos galácticos activos ou até mesmo (embora muito pouco) de blazares. Por isso, Francis Halzen, cientista na Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e também no IceCube, assinala: “É interessante que tenha havido um consenso geral na comunidade astrofísica que considerava os blazares como fontes improváveis de raios cósmicos, e agora, afinal, aqui estamos nós.”