O estranho silêncio dos fãs do “Brexit”
Quanto mais radical se quer ser, mais a sério se devem levar lições como a do Reino Unido.
No dia a seguir ao referendo do “Brexit” escrevi que esta geração de políticos britânicos tinha conseguido, com 201 anos de atraso, dar a Napoleão aquilo que ele desejara: o isolamento do Reino Unido na Europa. Dois anos depois, comprova-se: o “Brexit” está a ser uma espécie de desforra por Waterloo sem sequer ser preciso haver batalha.
Nessa altura havia ainda fãs do “Brexit” em Portugal que poderiam achar esta minha previsão exagerada. Façamos agora a prova dos nove: passado todo este tempo, o mais conhecido defensor do “Brexit”, o agora ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Boris Johnson demite-se fazendo um diagnóstico igual ao meu. Com as condições negociais agora propostas pelo governo britânico, escreve ele na sua carta de demissão, o Reino Unido “está a caminho de se tornar verdadeiramente numa colónia”, acrescentando que “é difícil ver as vantagens políticas ou económicas de uma tal situação”. Não sou eu que digo. É Boris Johnson.
Ora, foi já há 15 meses que o Governo de Theresa May enviou a carta ativando o Artigo 50 do Tratado de Lisboa que inexoravelmente fará com que o direito europeu deixe de se aplicar no Reino Unido no dia 29 de março de 2019, à meia-noite. Dados os prazos apertados para ratificação, o Reino Unido tem poucas semanas para negociar, se quiser ter um acordo de saída da UE (mais adiante já explicarei o que significa sair sem um acordo). E em vez de ser a UE a dividir-se, é o Governo britânico a não conseguir chegar a acordo entre si: não porque haja uma luta entre quem quer ficar na UE e quem quer sair, mas simplesmente porque não há nenhuma versão positiva do “Brexit” que não seja uma fantasia.
Por isso as demissões entre os conservadores britânicos destinam-se apenas a criar espaço para as narrativas com que retrospetivamente se procura sempre justificar este tipo de disparates. O problema, dir-se-á, foi que não se acreditou suficientemente (“o sonho do ‘Brexit’ está a morrer”, diz Boris Johnson, “sufocado pelo excesso de dúvidas desnecessárias”) como se o problema não foi ter-se acreditado demasiado em todas as patranhas do charlatanismo “eurocético”. O problema foi o “Brexit” ter sido, vejam lá se adivinham, traído por dentro: a famosa “facada nas costas”. O problema foi, nessa frase tão usada a torto e a direito, não se ter preparado um plano B, ou o Reino Unido não ter ido para as negociações preparado a romper com elas. Ora, meus caros, plano B havia e há. Chama-se Canadá, ou seja, um acordo comercial UE-Reino Unido como país terceiro: significa menos cinco por cento de PIB. E romper com as negociações também é uma possibilidade: basta estar preparado para que os produtos do Reino Unido não consigam sair para o continente ou que os cidadãos britânicos passem a ser sujeitos a 27 leis imigratórias diferentes à badalada da meia-noite do dia 30 de março. É isso, entre muitas outras coisas, que significa sair sem um acordo e o direito europeu deixar de se aplicar num país de um dia para o outro.
Quem durante estes anos lembrou estes factos simples foi sendo tratado pelos nacionalistas e populistas de todas as estirpes como se fosse um desmancha-prazeres. A informação é uma chatice, já sabemos, e a realidade ainda mais. Mas mais chato ainda é quando acontece um país achar que pode passar sem informação fidedigna ou dispensar a realidade. E quanto mais radical se quer ser, mais a sério se devem levar lições como a do Reino Unido.
É que tal como os britânicos não eram um povo por natureza mais pragmático e empírico do que os outros, não nos iludamos pensando que eles são mais tontos do que nós. Eles deram ouvidos a pessoas que apareciam na TV e eram tidas por sérias. E nós? Não tivemos também fãs do “Brexit”? Não houve quem dissesse que o “Brexit” nos alumiava o caminho? Não houve quem tivesse proposto um referendo de saída da UE no fim-de-semana a seguir ao britânico? Não houve quem discursasse em congressos partidários dizendo que o “Brexit” era o toque de finados de uma União pela qual não devíamos verter “uma só lágrima”? Não houve quem defendesse a saída do euro sem explicar como seria realista sair do euro sem sair da UE? Não há quem, ainda hoje, esteja a construir alianças políticas com partidos que querem tirar os seus países da UE?
Onde estão hoje os fãs portugueses do “Brexit”? Porque se calam? O que explica tal silêncio?
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico