Construções junto à Ponte da Arrábida. Como é possível?
Pelo licenciamento, pela posse e dimensão do terreno, por aquilo a que obriga a classificação da Ponte da Arrábida como monumento nacional, pela ausência de pareceres obrigatórios, não serão as construções da Arrábida ilegais?
O Douro é um rio que tem as margens escarpadas no tramo final do seu curso, algo muito raro, ou até, único. Por isso, as cidades de Porto e Gaia se fizeram junto a alguns dos seus pequenos afluentes (como o Rio da Vila e o Rio Frio), onde o declive era menor. Por isso, a urbanização tem valor cultural e paisagístico, numa formidável ligação entre a natureza e a construção e, por isso também, Porto e Gaia, junto ao Douro, têm paisagens de reconhecido valor, o que inclui as escarpas nuas nos lugares onde não foi possível construir, como bem se vê entre os Guindais e a Ponte Maria Pia e na última garganta do vale, já bem próximo do mar, onde não por acaso se fez a Ponte da Arrábida.
Junto ao rio, os edifícios – grandes como a Alfândega Nova, casario miúdo repetindo volumes e texturas, armazéns ou fábricas do tempo em que o Douro era o porto do Porto – deixaram uma marca de quem foi nascendo no tempo longo, sedimentou e criou uma identidade, uma atmosfera. A faina fluvial é agora outra. Aceleraram os tempos e querem-nos convencer que afinal os edifícios são apenas uma mercadoria formatada para fixar dinheiro que se multiplicará para produzir dinheiro, sem outro critério que não seja o santíssimo do mercado. Triste sina. Há quem pense até que o Estado é um estorvo (excepto se for para legitimar a selva ou para instrumentalizar) e a lei, um aborrecimento.
A massa bruta, arrumada em sólidos grandes como monos, com ou sem floreiras, pensados unicamente com a medida única de levar ao limite as vistas ilimitadas (com traseiras pró calhau). Que grandes são e que gritaria que fazem na agitação da cidade transformada em jogo do monopólio. Que modos tão rudes, vociferando sobre coisas tão delicadas como são aqueles traços comuns do viver em sociedade e em democracia, um mínimo de regras e transparências, de ética pública.
Causam uma inegável surpresa que por sua vez desencadeia uma pergunta óbvia: como é possível? Afinal, junto à ponte, os imóveis em construção estão localizados em “solos afetos à estrutura ecológica”, de acordo com o PDM, especificamente numa “área verde de enquadramento de espaço canal” e zona de “proteção de recursos naturais”... Sendo assim, como foi possível aprovar o pedido de licenciamento em junho de 2017 e emitir a licença de construção em novembro de 2017? Direitos adquiridos? Como, quando e porquê?
Além disso, a legislação estabelece que: todos os monumentos têm o seu enquadramento paisagístico objeto de tutela reforçada; nenhuma intervenção relevante a realizar nas proximidades de um imóvel classificado ou em vias de classificação pode perturbar significativamente a perspetiva ou contemplação do bem.
As construções encontram-se muito próximas de um monumento nacional, classificado em junho de 2013, e têm impactos diretos na leitura da ponte. Mesmo assim, o licenciamento é deferido?
E a lei diz ainda: todos os monumentos devem dispor de uma zona especial de proteção (ZEP), nas quais não podem ser concedidas licenças sem prévio parecer favorável da administração do património competente. Sendo certo que, na tramitação do processo de classificação da ponte, foi elaborada uma proposta de ZEP com uma área de 200 metros a montante e 200 metros a jusante da Ponte, e que foi, em setembro de 2012, aprovada pela direção do Igespar, por que razão não foi publicada aquando da classificação da ponte, em junho de 2013? E devendo a ZEP ser definida no prazo máximo de 18 meses, após a classificação, por que razão, hoje, passados cinco anos, ainda não há ZEP?
Como se explica ainda que um pedido de licenciamento tenha sido deferido em março de 2013, quando o pedido de classificação da ponte deu entrada em julho de 2010, o que tem efeitos suspensivos para a concessão de licenças?
A classificação gera ainda a caducidade dos procedimentos, licenças e autorizações já atribuídas e obriga o município (Câmara Municipal do Porto), em parceria com órgão responsável pelo património cultural (Direção Regional de Cultura do Norte, DRCN), ao estabelecimento de um plano de pormenor de salvaguarda para a área a proteger. E que, até à elaboração desse plano, a concessão de licenças ou a realização de obras já licenciadas dependem de parecer prévio favorável da administração do património cultural competente.
Ora, tendo sido emitido, pela DRCN, em 2015, um parecer negativo para cada um dos edifícios a construir, por que razão não foi considerado?
Como se explica ainda que, aquando de um novo pedido de licenciamento, já em 2017, tenham sido emitidos, pela Direção Municipal do Urbanismo, exatamente no mesmo dia (02.06.2017), dois pareceres contraditórios, um desfavorável e um outro favorável, tendo sido afastado o responsável que deu parecer desfavorável e nomeado, como responsável pelo projeto, o que deu o parecer favorável?
E o regulamento municipal terá sido cumprido quanto à acessibilidade dos bombeiros pela retaguarda do imóvel, em caso de emergência?
E que dizer das muitas dúvidas quanto aos procedimentos de apropriação e transmissão da propriedade, incluindo uma escarpa?
E por que razão a APDL não foi consultada, quando a lei o obriga?
E por que razão não se pronunciou a CCDRN sobre a construção, quando tem o poder de embargo em quaisquer operações urbanísticas desconformes com o disposto em plano municipal e a obrigação de emitir, na qualidade de única entidade coordenadora, territorialmente competente, uma decisão global e vinculativa de toda a administração, sempre que existam outras instituições envolvidas?
Pelo licenciamento, pela posse e dimensão do terreno, por aquilo a que obriga a classificação da Ponte da Arrábida como monumento nacional, pela ausência de pareceres obrigatórios, não serão as construções da Arrábida ilegais?
Se assim é, o que explica a inação da Câmara Municipal do Porto? E da Direção Regional de Cultura do Norte? E da Administração de Portos do Douro e Leixões? E da Comissão de Coordenação da Região Norte?
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico