Rapazes resgatados das grutas “têm que ser salvos psicologicamente”
Especialistas falam dos riscos dos jovens desenvolverem um quadro de stress pós-traumático, mas dizem que tal vai depender de como cada um reagir. Todos falam na necessidade de acompanhamento psicológico imediato.
Os especialistas não têm dúvidas de que tanto para um jovem como para um adulto estar preso numa gruta, sem luz, durante mais de 15 dias, nove dos quais sem comida e sem água, é uma experiência traumatizante que pode deixar marcas. Há o risco de alguns rapazes tailandeses que passaram por isso possam desenvolverem uma doença: o stress pós-traumático. Mas é um campo onde não há certezas. E alguns destacam a forma surpreendente como os rapazes parecem ter vivido a situação e como isso pode funcionar como um factor protector. Agora, tudo dependerá da personalidade de cada um, da forma como vão reagir à situação e da rede de apoio que tiverem. Todos concordam, contudo, que o acompanhamento psicológico tem que ser imediato.
“Logo de princípio, além de garantir a parte biológica e a alimentação, ao mesmo tempo tem que se tratar da parte psicológica”, defende o psiquiatra e psicoterapeuta Vítor Cotovio. O especialista alerta para o risco destes rapazes entrarem em stress pós-traumático, uma perturbação que os obriga a reviver na sua memória a experiência traumatizante. Associada a esta patologia estão a ansiedade, alterações do sono e do humor, dificuldades de concentração, entre muitas outras. “Qualquer pessoa que seja exposta a uma situação entendida como ameaçadora da sua vida pode desencadear o stress pós-traumático”, explica Vítor Cotovio. “Quanto mais preventivamente se actuar, mais se conseguirá evitar isso”, insiste. E completa: “As pessoas não são salvas só fisicamente, têm que ser salvas psicologicamente”.
Maria José Gonçalves, pedopsiquiatra e psicanalista, também acredita que um acompanhamento precoce vai minimizar os riscos de stress pós-traumático nos menores. A especialista considera surpreendente a maneira como estes rapazes reagiram à situação. “Tal só pode ter acontecido devido a uma ligação ao líder fortíssima. A confiança no treinador protegeu-os”, avalia.
Para a psicóloga clínica e forense Rute Agulhas o impacto que esta experiência vai ter nestes menores vai depender das suas características individuais e do suporte social e familiar com que cada um conta. “Vai depender do temperamento de cada um, dos traços de personalidade. Da sua auto-estima. Da sua resiliência”, aponta Agulhas. Mas há outros factores que podem contar. “Uma crença religiosa de que alguém os protege pode ser um factor protector de toda a situação. É muito importante a vigilância nas primeiras horas e dias, mas também a médio prazo. Os sintomas do stress pós-traumático podem surgir mais de seis meses depois do evento”, sublinha a psicóloga forense.
Rute Agulhas e Maria José Gonçalves defendem que é importante que os miúdos tenham espaço para falar. “É importante poderem verbalizar os sentimentos”, diz a pedopsiquiatra. “Por vezes, há uma tendência de dizer o que aconteceu foi uma coisa má, vamos esquecer. Mas é um erro. É importante dar-lhe espaço para que falem”, acrescenta Rute Agulhas. Ana Santos, psicóloga especializada em trauma, defende que é preciso perceber o ritmo e a estratégia que cada um adopta para ultrapassar a situação. Obrigar a falar também é um erro, considera. “Obrigar alguém a falar se a pessoa não tolerar isso pode retraumatizar”, alerta Ana Santos, sublinhando a importância de uma boa uma intervenção psicoterapeuta.
O mais importante num processo de reabilitação no caso de haver uma perturbação de stress, defende Cláudia Cabido, psiquiatra da infância e da adolescência no Centro Hospitalar Oeste, "é proporcionar um apoio médico e psicológico continuado no tempo com monitorização de sintomas e intervenções terapêuticas dirigidas aos sintomas do jovem sem esquecer o suporte terapêutico às famílias". O objectivo principal, completa, é permitir aos jovens o regresso às suas actividades diárias habituais, o mais precocemente possível. “Se os pais mantiverem este clima de tranquilidade e de segurança vai ajudar muito”, considera a pedopsiquiatra Maria José Gonçalves. Mas todos reconhecem que os riscos de stress pós-traumático não se ficam pelos miúdos, afectando de igual modo pais e equipa de resgate.
Apesar de tudo, Maria José Gonçalves está optimista, destacando a forma como os rapazes reagiram até agora. “Na cultura oriental há a ideia de que o sofrimento faz parte da cultura humana e tem que ser superado pela pacificação interior”, nota. Vítor Cotovio, também um praticante da meditação, acredita que o facto do treinador dos rapazes ser um antigo monge budista que lhes terá introduzido esta prática foi determinante. “Está provado cientificamente, por estudos de ressonância magnética, que a meditação aumenta a actividade do córtex pré-frontal, que é a parte do nosso cérebro que mede as alternativas, os riscos, os prós e os contras”, afirma.
A meditação, continua Cotovio, permite às “pessoas aprenderem a auto-regularem-se” e a não responderem de uma forma quase instintiva, evitando a taquicardia ou a hiperventilação. A terem acontecido essas alterações, sublinha o psiquiatra, tal podia ter significado que “o oxigénio se consumia mais rapidamente na gruta”. E o impacto não é só esse. “O nosso metabolismo fica mais lento e podemos, por exemplo, não precisar de comer da mesma maneira”.