Que cidade queremos?
Assistimos a uma diminuição da qualidade de vida da população portuguesa bastante significativa nos últimos anos.
Uma notícia recentemente publicada nos meios de comunicação social dava indicação do aumento exponencial que se tem vindo a verificar no imobiliário das cidades portuguesas, sobretudo em Lisboa e no Porto: “preços da habitação aumentam 12,2% no 1º trimestre de 2018, maior subida em oito anos”. De acordo com o Relatório de Estabilidade Financeira, publicado em Junho de 2018 pelo Banco de Portugal, este aumento nos preços da habitação tem sido explicado pela melhoria nas condições das famílias, mas também sobretudo por uma forte dinâmica do sector do turismo, em particular do alojamento local, e a muita procura por não residentes, em parte associada a autorizações de residência. Este interesse na economia portuguesa tem sido globalmente favorável para a estabilidade financeira. No entanto, este relatório revela ainda que a maioria do investimento neste sector tem sido realizado por fundos de investimento sobre os quais se tem pouca informação, o que pode acarretar alguns riscos significativos. Neste sentido, é criada a partir de Julho de 2018 uma recomendação preventiva que restringe a possibilidade de concessão de crédito à habitação e ao consumo, com o intuito de proteger a economia portuguesa de uma eventual nova crise.
Face a estas preocupações com a estabilidade financeira da economia nacional é fundamental reflectir também de forma aprofundada sobre os impactos que este tipo de actividades têm sobre a sociedade e as famílias portuguesas. Em 1992 o Nobel da Economia Paul Samuelson introduzia a noção do índice NEW (net economic welfare) como uma alternativa mais viável à avaliação do grau de desenvolvimento dos países do que o mero PIB. O NEW calcula-se subtraindo ao valor do PIB os custos sociais e danos ambientais causados pelas fontes de aumento do PIB. Este é um indicador que constitui sem dúvida um retrato mais realista das sociedades contemporâneas.
E quais são os eventuais custos sociais e ambientais que devemos considerar no cenário em que vivemos atualmente? Uma equipa composta por investigadores da Universidade de Barcelona têm-se dedicado a pensar de que modo a globalização socioeconómica pode ter efeitos na organização das cidades. Estes investigadores revelam que existe uma tensão crescente entre o capital local e o capital global e que tem consequências muito significativas para a qualidade de vida das pessoas nas cidades. Por um lado, um modelo assente no capital local está ligado com uma forte identidade local, inclui um tecido empresarial formado por pequenas e médias empresas, que atuam localmente para ir ao encontro dos interesses das comunidades que servem. Neste modelo, a sociedade civil tem um papel importante, existindo uma comunidade forte e que suporta as pessoas que dela fazem parte. Num outro pólo extremo, o modelo assenta num capital “anónimo”, cujo propósito é o de maximização dos lucros, sem grande preocupação pela qualidade de vida e bem-estar das comunidades locais. Esta abordagem leva ao isolamento social das pessoas e a um sentimento de desamparo aprendido do qual é difícil sair. Uma experiência em Psicologia mostra muito bem como ocorre este fenómeno. O psicólogo Robert Seligman fez um estudo em que dava pequenos choques elétricos a um cão sempre que este tentava sair de uma caixa onde estava preso. Passado um tempo já não era necessário dar mais choques: os cães entraram num estado de “desamparo aprendido” e não tentavam sair mais da situação, mesmo quando a porta estava aberta. Infelizmente, este tipo de “desamparo aprendido” também parece funcionar com os seres-humanos.
Embora o discurso vigente nas nossas sociedades nas últimas décadas pareça ser o da promoção social e do empoderamento, na realidade os choques subtis que têm sido produzidos nomeadamente com a crise económica e com a precarização do emprego e dos salários na Europa, em particular em Portugal, cria a sensação de que “não existem saídas possíveis”. A esta sensação associa-se uma falta de autoconfiança, diminuição de sentimentos de pertença, isolamento e solidão (apenas colmatados por ligações virtuais sem verdadeiro significado), uma redução nas fontes de suporte social informal e o descrédito no apoio social formal através dos mecanismos do Estado Social.
Assistimos a uma diminuição da qualidade de vida da população portuguesa bastante significativa nos últimos anos. Para além da emigração massiva de jovens que ocorreu e que continua em certa medida, testemunhamos um envelhecimento muito marcado da nossa população e um decréscimo muito significativo nos índices de natalidade. A situação que se vive atualmente nas cidades portuguesas em nada ajuda para a promoção de políticas amigas das famílias e das crianças. Alguns dados indicam que uma família com um rendimento líquido de 4000 euros já não consegue comprar casa em bastantes zonas de Lisboa. Se tivermos em atenção que, de acordo com dados da PORDATA, o rendimento médio de um trabalhador por conta de outrem era em 2016 de 924,9 euros então podemos pensar que praticamente nenhuma família portuguesa consegue comprar casa na cidade. Por exemplo, e a título bastante específico, a nova lei das moradas de acesso às escolas, apesar de diminuir os casos de fraude, reflete esta dificuldade em acompanhar os interesses das famílias, sobretudo de classe média. Com a habitação a preços muito elevados, é impossível para uma família de classe média portuguesa comprar casa em Lisboa, sendo remetidos para as zonas da periferia. As crianças terão na sua maioria de frequentar as escolas onde residem, sendo que tenderão a passar necessariamente mais tempo afastados dos seus pais que trabalham na cidade. Esta situação pode criar situações de grande desenraizamento. Por outro lado, sabemos que a ausência de estruturas formais para apoio às crianças tem sido colmatada em grande parte por um papel crucial que tem sido desempenhado pelos avós e outros membros da família. Neste sentido, muitas das queixas nas colocações nas escolas têm sido relacionadas com esta impossibilidade de colocar as crianças em escolas próximas dos seus avós, que são a base de apoio familiar, e sem os quais provavelmente estas famílias não poderiam educar os seus filhos.
Neste cenário é essencial repensar profundamente as políticas de habitação e colocá-las em prática de uma forma rápida. A Nova Geração de Políticas de Habitação parece estar a procurar introduzir mudanças neste sentido, criando mecanismos como as rendas acessíveis e incentivos ao aluguer de longo prazo. Noutras cidades, como Berlim e Madrid, têm sido impostas restrições ao aluguer de curto prazo. Estas medidas parecem na generalidade fulcrais para manter o equilíbrio e coesão do tecido social português. Alguns analistas salientam que poderão não ser suficientes. Resta-nos esperar para ver a direção em que irá este processo, na esperança de que os interesses das famílias portuguesas sejam defendidos.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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