Herberto Helder cronista
A revelação de um outro Herberto Helder, o cronista. A sua rigorosa atenção ao real circundante nunca desiste de inventar mundos.
As crónicas estão para Herberto Helder como as cartas estão para Camões. Em qualquer dos poetas será lateral este segmento da sua magna produção; no entanto, não deixa de ser possível encontrar vislumbres da vida onde faísca o génio de ambos, tanto na brevíssima epistolografia camoniana, quanto nas peças jornalísticas de Herberto agora vindas a lume. De resto, que diferença substantiva haverá entre descrever “a linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo” e constatar que “Rebentam mais críticos por aí do que repolhos pelas hortas – coisa má para as cozinhas e para a imprensa.” (p.71)? No fundo, é o mesmo acesso desataviado à matéria rodeante de um e outro. E que importa que o quinhentista causticasse as “damas da terra”, e o nosso contemporâneo estivesse a verberar os críticos? Ainda lhes baterá mais, e a preceito – “não existe diferença considerável entre críticos e público. Talvez os críticos tenham apenas um pouco mais de preconceitos. Isto sem as honrosas (como se diz) excepções. Absolutamente.” (p.63) Estas crónicas angolanas de Herberto Helder – pertencentes ao período em que o poeta viveu em Luanda, em cujo Notícia – Semanário Ilustrado colaborou, entre 1971 e 72 – funcionam como cartas, sem o serem, naturalmente. Possuem o mesmo condão do relato atento, a urgência de uma narrativa debruçada sobre o acontecer. Existem num dar a ver marcado pela imediatez que nasce de um espírito de resoluta fidelidade aos factos.
Herberto Helder “não foi jornalista porque foi sempre outra coisa qualquer” (p.7), afirma Daniel Oliveira no seu prefácio, e seria difícil contrariá-lo. As minúsculas do título aludem, por antífrase, à letra maiúscula de “Imprensa”, correspondente a uma espécie de disciplina de voto que, segundo Herberto, obrigaria os praticantes do ofício a um estilo único, uma caminhada sob os mesmos céus previsíveis. Noutras vertentes, ainda, uma afluência que singrava a olhos vistos. O brio da maiúscula, o afã com que se defendia um território de influência, em acções cerradas e álacres, parece o oposto de uma posição discreta e quase na sombra, que é a deste cronista. A sua passagem por tal desfile de caixas altas mais parece um acidente de percurso do que fruto de convicção. A sua, a haver, seria outra. O sabor indefinível da liberdade? “No fundo, escrevi [esta nota], apenas, para sentir como será bom deixar de escrevê-la.” (p.51) Aqui seria avisado voltar ao prefácio de D. Oliveira, para dele resgatar essa ideia de que Herberto teria decidido escrever “no Notícia para poder viver em Angola” (p.7). Descrever-se-á mesmo como “viciado visitador de lugares” (p.113). Seguindo uma ética pessoal – mas a partir da qual porventura se poderia extrapolar –, o decorrer da vida, enquanto objecto da atenção do cronista, “não deve ser olhado como um espectáculo” (p.34), mas como coisa digna de acontecer e registar sem placebos, nem maravilhamentos. Com uma crueza digna. O olhar do cronista é flagrante. Inimigo declarado dos “amadores do pitoresco” (p.14), importa-lhe a reportagem do que experimenta, ou lhe documentam, em testemunhos colhidos com lisura isenta de paternalismo, e uma atenção de minúcia irritada com abstracções tais a do “homem comum” – “Comuns são os homens todos, que diabo!” (p.95) O cronista não se fica pelos rodeios, nem pelas sugestões: ataca frontalmente. Sabe bem o que quer e o que não quer que a sua expressão seja. E di-lo com clareza afrontosa – “A lentidão do espectáculo move-nos a quase aceitar um estilo deambulatório, espraiado, curvo – que nos repugna em jornalismo. Queríamos introduzir aqui uma trepidação de imagens frontais e vivacidade de um diálogo que não há.” (p.15) Nesse sentido, a sua escrita actua como um contra-ataque, ofensiva sem pejo, oposta à falange inimiga – “Toda a literatura morre aos pés destas poucas palavras que ordenam e coordenam ritmicamente o trabalho de meia dúzia de homens.” (p.16) A realidade e os referentes que rodeiam o sujeito escrevente são uma demasia, mas também uma escassez, que inibe o ornamento e a calculação culta da frase torneada e elegante. O que, sem coarctar o impacto do seu trabalho literário, lhe confere uma precisão distinta. As vindimas são as “bodas da terra e do sol” (p.39); o mundo que o rodeia “é súbito e interminável” (p.137), e não são nele escassas as “bandejas da fatalidade” (p.163), que o escritor nunca pretende escamotear. Nem ornamentar. Uma escrita assim está constantemente a encurtar razões – “porque paciência muito pouca” (p.79) –, e é por isso que na sua expressão se pode sentir essa pressa que é uma urgência de dizer “como é”. Mas neste peculiaríssimo uso da linguagem nunca deixará de se fazer sentir “a calma estranheza do poético” (p.151). Ou neste estilo, se nos lembrarmos desse “Estilo” de Os Passos em Volta, cujo seminal “Se eu quisesse, enlouquecia”, parece conhecer um prelúdio numa destas páginas – “Claro que me apetece logo falar no bom tema da loucura.” (p.166) Ou esse momento de Photomaton & Vox em que Herberto escreve: “O estilo é a criação da dignidade.” Uma formulação que nem a mais irónica das confissões – “As minhas preferências estilísticas sempre oscilaram entre os isabelinos e os repórteres desportivos.” (p.173) – realmente contradiz.
Os alvos da crónica são tão factuais quanto, em certas angulações, se deixam constranger pelo humor e a ironia do cronista. Referenciando um cançonetista da época, atalha Herberto – “Tudela, que defenestrara o chapéu, lançara-se assim a intervir. Intervinha com o José Gomes Ferreira e o António Gedeão em estado de para-brisas.” (p.57) Quando é entrevistador, transforma a entrevista num género que tem mais a ver com uma catapulta do que uma afável troca de amenidades. Em vez de um pingue-pongue chocho e melado, HH troca os rodízios a tudo, e nada fica certinho. O entrevistador está constantemente a fazer a cama às suas próprias intenções, pelo que nada sai pelo modelo, nem pelo tédio. O que HH espera encontrar, não acha, e afirma-o, em vez de varrer para debaixo do proverbial tapete. A crónica-entrevista assume os desvios no caminho e a rebeldia do condutor. O volante vacila, quase se despista a companhia toda, mas no fundo é a impressão, o momento, o flagrante, aquilo que vem à tona. Do outro lado, pode estar Carlos do Carmo, ou Nelson Ned, como pode tratar-se da cobertura de um musical que então causava brado. O insólito não prepara o caminho, e a heterogeneidade ficará marca distinguível. A entrevista passa a ser como um ensaio de entrevista, plano para fazer uma entrevista, entrecortada por comentários, notas, hesitações. É o próprio HH quem o diz – “não estou ali para dizer que sim, apenas sim. Venho para saber como é” (p.61). E como é, significa não aderir porque sim, mas porque talvez haja parte a que aderir. Mas não será um sim obediente, nem conciliador – “Adiro completamente à voz mas não ao fado.” (p.61)
Olhando, imagina-se, em redor, Herberto chamará “comentadores-comedores” (p.52) aos agentes do post mortem que os jornalistas têm de, ou escolhem, ser. No caso, referia-se a um aniversário da morte de Hemingway, mas deve poder extrapolar-se para um Hemingway quase abstracto, que fosse aplicável a qualquer morto ilustre. Mas nem à hora da morte o insigne suicida deixa de levar a sua estocada, apelidado de “matador de elefantes” (p.53). Um reparo fiel à denotação daquela biografia, mas menos habitual no que são geralmente hagiografias sem direito ao contraditório.
A sociedade de “produção e consumo” (p.120) é topada, numa destas crónicas, como um infame sistema digestivo – “Os monstros sentimentais da plateia devoram simplesmente o prato oferecido pelos empresários – oferecido em troca de cifrões, claro está.” (p.84) Não é menos deprimente do que interpelante, a actualidade desse ponto de uma crónica em que Herberto regista, com ironia sabiamente doseada, os ímpetos assépticos dos autoritários e decisores – “Defenda a sua saúde não manuseando livros usados.” (p.55) Talvez fosse fútil a tentativa de determinar se seria mais exacto, quanto à nossa época, cortar o qualificativo e ficarmos pelos livros. Seja como for, a impressão, o sabor amargo que logo nos ocorre, são notícias de uma intemporalidade incómoda. Uma que não queríamos, certamente, experimentar. Mas que apenas a maior casmurrice negaria. Nem faltam as “guilhotinas”, que tanta tinta fizeram correr, há não muito tempo. A imprecação de Herberto Helder, essa, clama exacta e cortante – “De guilhotinas precisavam eles, esses editores infecto-contagiosos!” (p.56) E ainda precisaríamos de mais lenitivos, para suportar essoutro exemplo de actualidade, servido à boca pela lucidez, como se fosse um xarope (ou um veneno?), à distância de meio século da actual gentrificação – “O turista, como se sabe, é, logo a seguir à galinha (de aviário ou não), o animal menos viável da criação.” (p.126); “O turista é habitualmente manuseado desta maneira: tira-se de um hotel e mete-se noutro hotel. Serve-se, recheado, às bocas famintas.” (id.)
Quer se concentrasse no quotidiano, quer voltasse a sua atenção para livros e autores – caso mais óbvio dos três últimos textos, originalmente publicados na secção de Livros do Notícia –, o olhar do autor mantém a mesma tensão na vigilância. Agustina Bessa-Luís é, para lá de qualquer dúvida, “o nosso único génio literário” (p.80), que, por isso, “não merece a injustiça degradante da popularidade” (p.81); as descrições insertas na História Trágico-Marítima são descritas como “reportagens, num sentido moderno do termo” (p.185). Herberto transportou para estes textos a mesma “inquieta cumplicidade” (p.101) que marcava os tempos alterosos da sua juventude, a partir dos quais tece uma notável crónica da amizade que é o contrário do sentimentalismo de toada saudosista. A evocação de nomes como os de António Gancho, Luiz Pacheco, ou Manuel de Castro, trai a “lucidez do demónio” (p.102) a este último atribuída.