Marlene Monteiro Freitas: um Leão com Asas em Veneza
O 12.º Festival Internacional de Dança Contemporânea da Bienal de Veneza atribuiu o Leão de Prata à coreógrafa e bailarina cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas pela sua “indubitável genialidade, por um percurso que revela um poder, uma visão, uma frescura e liberdade criativa sem igual”.
No texto de apresentação do 12.º Festival Internacional de Dança Contemporânea da Bienal de Veneza, intitulado “Respiração, estratégia e subversão”, a directora artística Marie Chouinard retraça o percurso de uma substância que há biliões de anos atrás era inexistente na atmosfera terrestre, o oxigénio, e de como a acumulação deste gás tóxico expelido por determinados organismos foi capaz de desencadear eventos como a primeira extinção em massa, metamorfoses metabólicas e “orgias de declinação de formas de vida”, que “após uma longa sucessão de contingências e casualidades (...) culminou nos seres humanos”. Chouinard posiciona o humano como uma entidade animada entre tantas outras, traçando relações entre a multitude de respirações do cosmos, das plantas e a nossa própria respiração. Estes movimentos de contracção e expansão e troca de fluxos entre o exterior e o interior não só atestam a nossa intrínseca hibridez, como organizam e transformam matéria. Assim, continua Chouinard, “aquilo que é dejecto para uns é alimento de outros”, do mesmo modo que “a criação de um é inspiração para o outro”.
Marie Chouinard elegeu duas mulheres a quem atribuir o Leão de Ouro Prémio de Carreira e o Leão de Prata, prémio para um talento emergente a, respectivamente, Meg Stuart, a coreógrafa e bailarina americana, sediada em Bruxelas, com mais de 30 criações e um percurso de constante desafio metodológico e disciplinar (e um longo percurso colaborativo com coreógrafos portugueses), e Marlene Monteiro Freitas, a desconcertante coreógrafa e bailarina cabo-verdiana sediada em Lisboa.
Meg Stuart abriu esta edição de dança da Bienal de Veneza, no passado dia 22 de Junho, com a estreia italiana de Built to Last (2012), uma obra que parte de composições musicais de Rachmaninoff, Beethoven, Xenakis, Ligeti, entre outros. Através da metacomposição do dramaturgo Alain Franco que posiciona os cinco performers desta peça numa máquina temporal da história da dança, Stuart visa criticar valores eternos, universalistas e heróicos associados a algumas destas composições. Numa era de descrença no futuro, onde muitas coisas são criadas para serem destruídas pouco depois, Stuart reitera a necessidade de seguir em frente, reinventando-nos.
Uma escolha inequívoca
E na passada quinta-feira, dia 28 de Junho, no Teatro Alle Tese, o público recebeu a estreia veneziana da obra de Marlene Monteiro Freitas, com a peça Bacantes: Prelúdio para uma purga (2017). Tratou-se de uma escolha inequívoca, referiu Chouinard, oferecer o Leão de Prata a Marlene Freitas pela sua “indubitável genialidade, por um percurso que revela um poder, uma visão, uma frescura e liberdade criativa sem igual”. E acrescenta que “o seu desejo mais profundo é que este prémio seja só o início de uma longa carreira, que Marlene tenha oportunidade de desenvolver a sua arte” e termina fazendo o apelo para que “Portugal verdadeiramente reconheça e apoie esta artista”.
Desde a última década, Marlene tem vindo a edificar um corpo de trabalho coreográfico absolutamente excepcional, tão metamórfico quanto metabólico no seu processar de uma complexidade de referências interdisciplinares, de desejos e forças. O espectáculo é o dejecto desse processo (as “fezes” como a ele se refere Marlene) que não pretende mobilizar sentidos mas forças e cargas emotivas em conflito, tensões opostas que estranhamente se complementam na sua circularidade. Uma obra profundamente ancorada na potência da música, do ritmo e da dança, do imaginário e do inconsciente. Muito além da razão e da linearidade da relação causa-efeito, “a experiência teatral da dança surge num terceiro espaço”, observa Marlene, “o do encontro entre duas forças, aquela provocada pelo palco e pela performance e aquela produzida pelo espectador e pelo público.
No Arsenale, à entrada do Teatro Alle Tese e sob as águas calmas de Veneza, os trompetes fazem soar uma marcha fúnebre cabo-verdiana e guiam o público para o início das “Bacantes: Prelúdio para uma purga”. Em palco observamos figuras vestidas de branco, outras de cinzento, rostos estranhos, olhares fixos e delirantes, e uma profusão de bancos e estantes de orquestra distribuem-se pelo palco, contrastando com o cenário branco e homogéneo do fundo.
Bacantes contemporâneas
“A tragédia nasceu do génio da música” referiu Nietzsche na sua Origem da Tragédia, porque “música e mito clássico surgem como forças dionisíacas de um povo” e são inseparáveis. Marlene Monteiro Freitas recupera este conceito como um dos catalisadores coreográficos, usando a imagem do músico clássico sentado, à qual se junta a representação das figuras de vasos gregos clássicos como alguns dos elementos compositivos da obra.
Estas imagens desdobram-se numa multiplicidade inimaginável de possibilidades: os bancos dos músicos metamorfoseiam-se em cavalos, bicicletas, barcos; as estantes de música transformam-se em máquinas de escrever, óculos de realidade virtual, narizes, pénis, batutas de maestro, espingardas, entre outros. Treze figuras, entre músicos e bailarinos (Andreas Merk, Betty Tchomanga, Cookie, Cláudio Silva, Flora Détraz, Gonçalo Marques, Guillaume Gardey de Soos, Johannes Krieger, Lander Patrick, Miguel Filipe, Tomás Moital, Yaw Tembe, Marlene Monteiro Freitas), partilham este delírio dionisíaco tão trágico quão liberatório, que mobiliza passagens entre “ordem e desordem, ilusão e revelação, do idílico ao horrífico, contradições que falam muito da natureza humana”, como explica Marlene Monteiro Freitas, e para o qual a coreógrafa convoca composições musicais de Berio, mornas cabo-verdianas, Caetano Veloso, funk brasileiro, palavras de Pasolini, Adolph Wölfli, filmes como Madame Butterfly, um excerto do documentário do japonês Kazuo Hara, e ainda o Bolero de Ravel que, explorado até a exaustão, encerra com excesso e delírio estas Bacantes contemporâneas.
No teatro de sala cheia, o público de Veneza dividiu-se entre a estupefacção, a admiração e a consternação. Num belíssimo e emocionado discurso, Marlene confessa, com o Leão de Prata nas mãos que se sente um pouco como Agave de As Bacantes, a mãe que chega ao castelo de Cadmo, seu pai e rei de Tebas, com a cabeça do seu filho morto nas mãos pensado tratar-se de um troféu, a cabeça de um leão que ela própria matou sob o feitiço de Dionísio. E continua, dedicando este Leão de Prata, “também ele um híbrido”, ao seu pai “que sempre a incentivou a ver mais além, a caçar leões mesmo quando isso não era possível, a nadar atrás de sereias mesmo que estas não existissem, a escavar mais fundo e fundo e acreditar que cada objecto banal encontrado poderia ser um tesouro deixado por piratas”. Agradeceu ainda à sua família e a todos os amigos presentes o apoio incondicional, e terminou partilhando aquele prémio com todos os performers, técnicos e produtores, enunciando-os um a um.
Como referiu Marie Chouinard, após a entrega do prémio: “Veneza será uma grande cidade se for capaz de recordar este momento e esta obra para sempre”.
A crítica viajou a convite da Bienal de Veneza