O Museu Judaico de Lisboa: um testemunho da pluralidade de culturas da cidade de Lisboa
O Museu que estamos a criar não é o “Museu dos judeus”, é um Museu dos lisboetas, de Portugal e dos portugueses.
O processo de criação do Museu Judaico de Lisboa tem provocado dois tipos de reacções diferentes, senão mesmo opostas: de um lado as tentativas de carácter legal para impedir a sua construção “ali” e “assim”, e do outro, um apoio entusiástico de milhares de pessoas que têm manifestado a sua satisfação por finalmente ver narrada de forma acessível ao público a história da presença judaica em Portugal. Este apoio não vem apenas das instituições envolvidas ou de pessoas individuais: vem de museus nacionais, regionais e de outras instituições oficiais que nos cedem em depósito peças de interesse judaico; vem de doadores privados que nos entregam o seu espólio ou simplesmente as suas memórias em forma de objectos, fotos e escritos; vem de instituições similares internacionais que nos têm manifestado o seu apoio de forma inequívoca e com quem o futuro museu estabelecerá parcerias e intercâmbios no âmbito de exposições temporárias. Este entusiasmo já deu origem à criação em Dezembro 2017 da Associação de Amigos do Museu Judaico de Lisboa, com uma importante componente internacional.
Tudo isto para dizer que o Museu Judaico de Lisboa é já um processo irreversível: o guião museológico e o projecto museográfico estão praticamente terminados com a colaboração de alguns dos melhores investigadores da história judaica em Portugal, muitas peças doadas ou em depósito já estão restauradas ou em vias de o ser, o programa multimédia também se encontra em avançado estado de andamento, para não citar muitos outros aspectos fundamentais já concretizados.
Tal como qualquer outro museu, o Museu Judaico de Lisboa contará uma história: a história de perto de um milénio de presença judaica em Portugal. A cultura religiosa judaica estará patente seguindo um percurso que se desenrola em torno de três aspectos centrais: espiritualidade e sabedoria; o ciclo da vida e o ciclo do tempo. Por sua vez, o percurso histórico evoca os primeiros vestígios antes da Nacionalidade, mas o foco é o período da “Convivência” e os contributos da população judaica entre os séculos XII-XV, seguindo-se a era da “Intolerância”, a Diáspora judaico-portuguesa e o regresso contemporâneo do Judaísmo.
Confesso que, à partida, o desafio era grande: as conversões forçadas em 1497, a instauração da Inquisição em 1536 e respectivas perseguições apagaram grande parte dos vestígios da presença judaica em Portugal, não apenas na memória pública mas também no património material nacional. Felizmente, quis o bom senso e a coragem de muitos homens e mulheres que, na sua fuga da sanha inquisitorial, conseguiram salvar algum desse património hoje presente em museus e bibliotecas estrangeiras. Se assim não fosse, essa herança estaria hoje irremediavelmente perdida. E neste campo o desafio está a ser ganho: o futuro Museu Judaico de Lisboa honrará, estamos certos, a memória dos nossos antepassados, os que deixaram para sempre o seu “paraíso perdido” e os que ficaram arriscando a sua vida e segurança...
Compreendemos e somos solidários dos moradores de todos os bairros históricos e nomeadamente de Alfama onde está previsto o nosso museu. Sabemos que estão sujeitos às duras leis do mercado que têm permitido muitos despejos injustos e dolorosos. Mas não posso deixar de dizer que neste caso concreto o museu é simplesmente o “bode expiatório” desse descontentamento. Contrariamente ao que tem sido dito, nem a volumetria do projecto da arquitecta Graça Bachmann nem a sua fachada central “descaracterizam” o Largo de São Miguel. Ou então teríamos de concluir que Lisboa e, nomeadamente, os seus bairros populares estão em processo de descaracterização contínua, não apenas por novas construções “dissonantes” que se erguem por todo o lado, mas pela descaracterização do seu elemento humano, esse sim essencial. No caso concreto do Museu Judaico, cujo projecto foi aprovado pela Direcção-Geral do Património Cultural e tem merecido numerosos elogios por conciliar tradição e contemporaneidade, o único elemento “dissonante” é a Estrela de David estilizada numa parte da fachada. Mas num bairro onde a convivência de culturas é tão antiga e ainda hoje marcada por vestígios romanos, cristãos e islâmicos, a presença judaica com a sua simbologia será mais um testemunho da pluralidade de culturas do bairro e da cidade de Lisboa.
O Museu Judaico de Lisboa não pretende ser um “ajuste de contas” com o passado: na história de luz e sombra que caracteriza a presença judaica em Portugal, a tónica será posta na “luz”. A visão que fundamenta todo o guião museológico tem como primeiro objectivo destacar fundamentalmente os contributos dos judeus portugueses, especialmente em Lisboa, assim como nos países da diáspora onde procuraram refúgio.
Mas temos um outro objectivo: que o visitante, ao sair do Museu, entenda que a história que acabou de ver é também a sua história, parte indissolúvel da história de Portugal. O Museu que estamos a criar não é o “Museu dos judeus”, é um Museu dos lisboetas, de Portugal e dos portugueses... Fundadora do Museu Judaico de Lisboa e coordenadora da sua instalação